terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

FHC, os bastidores da república e o jeitinho brasileiro


Foi com certo ceticismo que coloquei o livro de Fernando Henrique Cardoso, O Improvável Presidente do Brasil -- Recordações (Ed. Civilização Brasileira), no meio de uns livros que adquiri dia desses. Não que eu esperasse um livro estendendo aquela visão medonha de comércio internacional escondida na "Teoria da Dependência" pela qual ele é academicamente famoso -- o que justificaria meu receio. É que com tanta coisa mais "educativa", digamos, pra ser lida, esse tipo de leitura que mistura biografia com "fofoca" parece uma distração.

Mas o livro é uma surpreendente e interessante leitura que vale a pena.

Misturando memórias com uma leitura academicista de certos eventos, o livro dá acesso privilegiado ao modus operandi das nossas instituições e de seus personagens recentes. Tem também um monte de histórias de "bastidores", doméstico e internacional, engraçadas.

O que a presidência "ensinou" à FHC?
Há várias possíveis leituras do livro a meu ver. Umas mais positivas que outras. Destaco três entre as quais me vejo alternando ao longo de várias passagens:
  •  As trajetórias das sociedades/governos são mais fortuitas e marcadas por aleatoriedade do que parece ou queremos acreditar; 
  • O Brasil é uma terra de toscos, com uma elite igualmente tosca, iníqua e short-sighted, fadando o país a permanecer enterrado no subdesenvolvimento;
  • Os espasmos de reformismo que a sorte (ou a necessidade) bafeja sobre a economia brasileira, vai produzir uma espécie de "quebra estrutural" irreversível, nos jogando numa trajetória de gradual modernização.
Há inúmeras passagens no livro que ilustram, a meu ver, cada uma dessas leituras. Um pequeno resumo de duas que me chamarama atenção:

Os Primórdios do Plano Real
No capítulo 8, FHC conta como logo que o Itamar Franco assumiu a presidência, se espalhavam os rumores de que Itamar era "burro", ao ponto de o próprio Itamar indagar se FHC assim pensava sobre ele -- usando tal termo. Mais interessante é como, à revelia e para completo desespero de FHC, Itamar o nomeou Ministro da Fazenda.

Os anos Collor
FHC conta como se animou com o reformismo liberalizante do começo do governo Collor apenas para descobrir em seguida, por meio de outros amigos empresários e políticos, que Collor e seus colaboradores tinham montado um agressivo esquema de propinas e envio de grandes somas de dinheiro ao exterior. FHC menciona a nababesca festa que o tesoureiro da campanha presidencial de Collor, o falecido PC Farias, organizou para celebrar o primeiro bilhão arrecadado pelo esquema.

Jeitinho
Pra não dizer que é só biografia e fofoca, tem essa passagem aqui sobre o "jeitinho brasileiro" que achei insightful:
"Em seu nível mais básico, minha presidência se centrava na tentativa de transformar o Brasil num país estável. Ao longo de nossa história, tínhamos cambaleado de uma crise a outra, decorrência sobretudo, da nossa resistência a aceitar regras. (...) Haviam muitos, inclusive brasileiros, que consideravam tal mudança impossível. Viam o Brasil como a incorrigível terra do jeitinho, das pequenas manobras astuciosas para dar a volta no sistema. Essa palavra e a ideia por trás dela eram supostamente algo incurável na nossa identidade nacional, produto de uma sociedade que se orgulhava profundamente de burlar a lei. Muitos observadores há muito viam o jeitinho como decorrência de certa tendência tropical à jovialidade e ao bom humor, contribuindo para firmas o estereótipo do Brasil como um espécie de adorável vagabundo, com um copo de bebida na mão e dotado de uma lamentável mas inata incapacidade de cumprir compromissos." 
"Eu, porém, considerava que o jeitinho revelava um aspecto oculto e muito mais sombrio da sociedade brasileira, algo que tocava no cerne da nossa história, ameaçando o meu governo. No Brasil, a recusa de respeitar as regras era na realidade apenas mais um produto da nossa sociedade profundamente injusta. Onde outros podiam ver simplesmente caos e improvisação, eu enxergava um esforço incrivelmente organizado no sentindo de preservar o status quo."

Daron Acemoglu e James Robinson certamente "curtiriam" essa passagem acima... (vejam o que os dois dizem, por exemplo, aqui e no livro "Why Nations Fail").

5 comentários:

  1. "Haviam muitos..." ??

    Foi você que copiou errado ou o FHC escreveu assim?

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    1. Transcrição Ipsis litteris.

      Não sei se ele está errado Anonimo. Se ele usou como auxiliar e no sentido de "ter", então não é impessoal e pode concordar com o sujeito. Mas tem que checar. Quem lembra deças regras gramaticais di exssessão todas né?

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    2. Aôôôooo "emplicância"...

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  2. Poderia explicar melhor como o jeitinho mantém o "status quo"? Pois não se vê o jeitinho apenas na classe favorecida.

    Como o jeitinho dos que não são elite favorecem os que são?

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    1. é doto, quando o pobre dá jeitinho, tira um almoço na faxa...quando o rico dá jeitinho, tira 1 milha na faxa

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