quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Quanto vale o diploma universitário?

Qual o incentivo que um estudante universitário tem para perseguir notas nas disciplinas do seu curso mais altas do que o mínimo necessário para obter aprovação? Eu diria que quase nenhuma.

Excetuando-se o caso daqueles que perseguirão bolsas de estudo, certos estágios e cursos de pós-graduação no exterior, há entre os demais a percepção de que concluir seu curso com uma média geral 9.5 ou 6.5 vai rigorosamente ser a mesma coisa. E essa percepção me parece correta. Por duas razões.

Primeiro porque a informação sobre como foi sua performance acadêmica relativa no curso não é publicada no diploma ou no seu histórico escolar (o sistema de geração de histórico escolar da USP computa esta informação mas apenas sob demanda e, salvo engano, exclusivamente para o professor). Segundo, e quase certamente como consequência da primeira, porque os empregadores raramente solicitam essa informação.

Quem se importa com o histórico escolar?
É absolutamente compreensível, aliás, que os empregadores brasileiros não tenham qualquer interesse em inspecionar o histórico escolar dos alunos. Não há parâmetros referenciais de avaliação -- nem mesmo dentro de um mesmo departamento (!), muito menos nacionais. Não se sabe portanto como um 8.5 em, digamos, "Estatística I" na Universidade UFY se compara com um 5.5 na mesma disciplina Universidade UFZ. Na verdade, a falta de comparabilidade é, por vezes, até mais severa que isso: não se sabe como um 8.5 na mesma disciplina de uma universidade se compara com um 5.5 na mesma disciplina e na mesma universidade dada por outro professor. Ou seja: não há comparabilidade de performances entre universidades e até mesmo dentro da mesma universidade. 

Diante de toda essa heterogeneidade, é até justo e desejável que notas obtidas em instituições com padrões de rigor avaliatório sabidamente distintos não sejam utilizadas para decidir o quão empregável um indivíduo é em relação a outro. Seria simplesmente injusto. Afinal, um sujeito com 5.5 da USP (SP) pode ser muito melhor do que um sujeito com 8.5 da Universidade Anhembi Morumbi (SP).

Eficiência alocativa


Temos nessa situação o clássico conflito entre justiça e eficiência. Sem padrões comuns de avaliação que tornem minimamente comparáveis o rendimento escolar dos estudantes de instituições distintas, parece justo que os empregadores ignorem essa informação (rendimento escolar relativo). Mas sustento que a situação é absolutamente ineficiente.


Para entender o porquê, é preciso ter em mente que a universidade tem essencialmente duas funções. Uma função, e a mais convencional das duas, é a de ensinar o ferramental de uma profissão. Isso inclui pensar e resolver "problemas" típicos da profissão de forma autônoma e segura mas também sociabilizar-se de forma minimamente adequada com outras pessoas -- um requisito necessário para operar com desenvoltura em ambientes profissionais "modernos" onde se é comum trabalhar em grandes grupos. É verdade que os currículos universitários não dão atenção para essas ``soft skills'' -- tem muito aluno que sequer sabe escrever um e-mail em tom cordial e profissional para seus professores -- mas a "experiência universitária", ainda que restrita à interação com gente do mesmo curso, ensina uma ou duas lições sobre como navegar o mundo das relações interpessoais (uma habilidade importante no ambiente de trabaho).

A segunda função da universidade, menos notada mas não menos importante, é a de avaliar e certificar para a sociedade a aquisição de competências. Essa função sinalizatória tem papel crucial na alocação eficiente de recursos humanos, pois ajuda que, em cada área, os indivíduos mais qualificados sejam alocados aos empregadores que lhes atribuem maior valor.

É claro que é possível argumentar que, em algumas áreas, dimensões não capturadas pela performance acadêmica são tão importantes que a nota média do sujeito em um curso de graduação é uma sinalização de pouca importância. Não creio que esse seja o caso da vasta maioria dos postos de trabalho; e, de qualquer forma, desde que o desempenho acadêmico tenha alguma correlação bem estabelecida com habilidades necessárias para o posto de trabalho que se pretende ocupar, o diploma com a indicação de desempenho acadêmico relativo já terá enorme valor para seus potenciais empregadores.

É claro que esse sinal não é exaustivo, razão pela qual as empresas possuem processos seletivos internos, em geral desenhados para tentar capturar sua competência potencial em outras dimensões relevantes para a posição. Como esses processos internos de seleção usam pequenas amostras comportamentais (dá para fingir ser sociável por 5 minutos mas não por 6 meses...), é relativamente fácil "game" o sistema empregado por grande parte dos departamentos de RH, criando inacurácia no processo de "matching" entre empregado e empresa, que posteriormente se manifestará  -- tudo mais constante -- em durações de emprego menores do que o desejável. É possível, portanto, que esse amparo maior em processos internos de seleção (baseados em horas de entrevista, se muito) e menos em performance acadêmica relativa (baseado em 4/5 anos de curso) explique parte do alto índice de rotatividade de mão-de-obra que existe no Brasil.

O fato é que, hoje, os diplomas emitidos pelas universidades brasileiras não divulgam essa informação sobre desempenho acadêmico relativo dos estudantes (se você foi o primeiro, ou segundo, ou o terceiro...ou o último do seu ano).

Mas e daí meu bem?
Não acredite que a não divulgação dessa informação é inócua. A falta de um sistema de classificação de diplomas com base nessa performance relativa tem várias implicações de curto e longo prazo para estudantes, universidades e o próprio mercado de trabalho.

A implicação mais óbvia -- e uma com a qual muitos professores estão familiares -- é a proliferação entre os estudantes de condutas "minimizadoras de esforço". Ou seja: como é o diploma, e não as notas em si, que realmente importa, os alunos procurarão minimizar o esforço de estudo -- o que é absolutamente racional. Isso explica, por exemplo, a busca por professores fáceis (ou, na gíria paulistana, "professor coxa") e, consequentemente, as reclamações que muitos enfrentam quando tentam "subir a barra" do curso. Uma boa ilustração desse processo de coordenação entre os estudantes em busca do curso mais suave de conclusão do curso pode ser visto nos comentários desse site de avaliação dos professores aqui.

O Caso dos MBAs
Os resultados de um artigo acadêmico escrito por Daniel Gottlieb e Kent Smetters, ambos da Universidade da Pennsylvania, servem para ilustrar a implicação acima*. Os autores constroem um modelo com estudantes, escolas e empresas para tentar entender, entre outras coisas, o porquê dos estudantes das escolas mais renomadas de MBA dos EUA votarem em favor de uma "política de não divulgação de notas" para as empresas. O trabalho mostra que tal política favorece os estudantes dos programas de elite exatamente porque permite que elas reduzam seus esforços de estudo sem comprometer o salário esperado que receberão -- a ideia aqui é que sem divulgação de notas (proxies para a produtividade), o mercado pagaria o mesmo salário para todo mundo proveniente do mesmo programa top de MBA; dependendo da distribuição de habilidade dentro do seu programa, esse salário pode ser maior do que o salário que você receberia se esse parâmetro fosse observável. É como se "pegassem carona" no prestígio que a seletividade de estudantes traz para a instituição.


Os resultados desse paper sugerem, portanto, que é razoável acreditar que a política de não divulgar a performance relativa dos estudantes -- que seria uma generalização para todo o sistema de ensino superior brasileiro dessa política de "grade non-disclosure" de alguns MBAs -- contribui para induzir os estudantes a se esforçarem menos.

Não é difícil perceber que essa política beneficia as universidades de elite e prejudica os egressos das universidades de menor prestígio. Sem divulgação de performance relativa, a seletividade da universidade acaba sendo a única dimensão que as empresas podem utilizar para inferir a "produtividade" dos graduados, o que explica o "prêmio salarial" que os egressos dessas instituições  em geral comandam no mercado de trabalho. Isso prejudica, talvez de forma irreversível, os alunos egressos das instituições fora do grupo de elite, pois a impossibilidade de sinalizar alta habilidade afetará sua colocação inicial no mercado e, por conseguinte, sua trajetória futura de emprego. Afinal, como eu já mostrei em outro post publicado neste blog, e em outro contexto, é razoável acreditar que ao menos para instituições não muito distantes uma da outra, exista um "overlapping" nas distribuições de qualidade. Isto é, os melhores alunos de uma universidade top 50 podem ser melhores ou tão bons do que os piores alunos de uma universidade top 10.

Classificação de Diplomas
Uma mudança institucional relativamente simples pode aumentar enormemente o valor da sinalização (de competência, produtividade etc) contida no diploma universitário: a classificação dos diplomas com base na nota média.

O negócio funcionaria assim: com base na nota média do estudante ao longo do curso (valendo tudo, ou seja, nada de expurgar do histórico do estudante disciplinas em que ele foi mal), a universidade monta um ranking dos concluintes. A universidade então confere diplomas com "rótulos" que indicam a posição relativa do concluinte dentro do seu grupo de referência (os alunos do seu ano de conclusão por exemplo).

As universidades pré-estabeleceriam um percentual de diplomas que, aproximadamente, receberiam cada rótulo (o que obviamente requer um considerável grau de padronização das notas nas disciplinas entre instituições). A título de exemplo, coloco um sistema de classificação abaixo com os respectivos percentuais de diplomas dentro de cada "classe":

Diploma "Classe A" (15% dos concluintes)
Diploma "Classe B, Divisão Superior" (40%)
Diploma "Classe B, Divisão Inferior" (25%)
Diploma "Classe C (15%)
Diploma Ordinário (5%)

Esse sistema de classificação é adotado pelas universidades britânicas (a Universidade de Cambridge adotava algo similar desde o século XVI) e praticamente, com alguma variação, por todas as universidades do mundo Anglo-Saxão. Embora os diplomas das universidades norte-americanas não divulguem esse rótulo classificatório no próprio diploma de graduação, a "nota-letra" média dos estudantes (Grade Point Average, que pode ser colocada em uma escala numérica de 0 a 4) é padronizada e divulgada comumente nos Curriculum Vitae de quem está procurando emprego ou vaga em programas de pós-graduação.

Quem ganharia e quem perderia com esse sistema de classificação?



Ganhariam os melhores alunos. Esses teriam uma ferramenta adicional de sinalização para se distinguirem dos pares menos esforçados/habilidosos. Ganhariam os professores que desejam introduzir esquemas mais "puxados" de avaliação. Esses ao menos contariam com o apoio dos estudantes do "tipo alto" para os quais o esforço em adquirir um "sinal" (nota) mais valioso na disciplina é menor. Ganhariam as universidades pior ranqueadas regionalmente, pois com um sistema padronizado de classificação, o diploma de uma instituição dessas pode, em princípio, aalavancar oportunidades de emprego tão boas quanto aquelas conferidas por um diploma de uma universidade de elite. Ganhariam os empregadores, que teriam agora uma sinalização mais acurada da "qualidade" (ao menos na dimensão acadêmica) dos graduados que lhe pedem emprego.

A medida enfrentaria resistência de três frentes. Dos estudantes menos habilidosos e com menor disposição em colocar esforço na obtenção do diploma; das universidades "de elite" que ganhariam pouco com a mudança e teriam que aceitar a interferência externa de examinadores sobre seus processos de avaliação, e dos "ideólogos" dentro e fora da universidade que, por razões nunca muito claras, se opõe à meritocracia.

Há que se fazer contas mais detalhadas. Mas à primeira impressão, os ganhos dessas mudanças no sistema de certificação do sistema de ensino superior brasileiro parecem ser agregadamente muito maiores do que eventuais perdas de um outro participante.


* Agradeço ao Marcos Nakaguma pela dica do artigo.

8 comentários:

  1. "melhores alunos de uma universidade top 50 podem ser melhores ou tão bons do que os piores alunos de uma universidade top 10."

    Peixe grande, lagoa pequena. Quem escreveu (bem) sobre esse problema foi (fora da academia), Malcom Gladwell, em seu último livro. Vale à pena.

    Agora, entrevista de emprego não é o principal critério de seleção em bons empregos, meu caro. Há provas, há os famosos testes calcados no GMAT para consultorias e bancos - e há correlação entre desempenho nesses testes e desempenho em business schools atestada em papers.

    Outra coisa: pra MBA, o sistema que você propõe seria inócuo. "Ninguém é demitido por comprar IBM", e ninguém é demitido por recrutar em Harvard - ou na USP no lugar da UNIP. Esse viés não muda com a divulgação da nota.

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  2. A princípio, parece-me que tal classificação somente aumentaria a demanda por professores "coxa", afinal, seria mais vantajoso ter um professor que garante uma boa nota do que ter um professor mais rígido, mas que 'obriga' o aluno a aprender mais através de uma avaliação mais rigorosa.

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    1. De fato. Mas a implementação de um esquema desses requer que as provas/testes/exames passem por algum tipo de padronização e avaliação externa para garantir comparabilidade (como é, por exemplo, nas universidades britânicas). O aluno do professor "coxa" seria o candidato mais provável a uma performance ruim. Não vejo portanto como a demanda por um professor que te prepara mal -- e aumenta a chance de vc concluuir o curso com um diploma (digamos) de 3ª classe -- aumentaria nesse contexto.

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  3. Parece-me que a preferência dos alunos dos melhores MBAs americanos está relacionada também ao ambiente do curso. Acredito que o perfil das pessoas que frequentam esses cursos é extremamente competitivo. Sabendo que a nota será pública, haveria ainda mais competição. Isso poderia prejudicar a cooperação de tal modo a diminuir o aprendizado do conjunto em geral. Sem contar que aprender a cooperar (trabalhar em equipe) é competência valorizada atualmente. Evidentemente, essa teoria não se aplica aos cursos de graduação no Brasil.

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  4. E o que fazer com os professores ruins? No meu curso de graduação, em uma Universidade top 10 do Brasil, pelo menos metade dos professores/cursos foram muito ruins e eu não tinha o menor incentivo para me esforçar além o necessário para tirar a nota mínima. Nos poucos cursos bons que fiz, minha nota geralmente ficava entre 9 e 10. Como fica essa situação? É eficiente gastar tempo para tirar uma nota alta em uma disciplina mal ministrada apenas para sinalizar para o mercado, em vez de alocar este tempo para se dedicar àquilo que realmente lhe traz retorno em termos de aprendizado?

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  5. Sou a favor também de um disclosure da avaliação dos professores, para que os alunos possam escolher os que tenham também maior motivação, capacidade didática, planejamento de aulas, etc.
    Todos os alunos sabem a quantidade absurda de professores picaretas quee dão menor importância às aulas em detrimento de pesquisa. Praticamente não existem incentivos, já que são funcionários públicos.

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    1. Se você acha que professores bem avaliados são os que planejam aulas, tem motivação, etc, você está completamente enganado. As avaliações dos alunos refletem essencialmente facilidade em conseguir aprovação.

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    2. Vou desconsiderar sua afirmação baseada em preconceitos sobre os alunos. Inclusive, existe avaliação aberta coordenada pelo centro acadêmico, onde sua afirmação se mostra falsa: é só pegar como contra-prova a avaliação do Giba, que reprova costumeiramente mais de 50% das turmas mas tem boa avaliação.

      Agora, seu problema é de interpretação. Se não há uma avaliação eficiente dos professores, que se crie uma! É algo de extrema importância, e é vergonhoso a fea não possuir uma. Ah...! E quando criarem-na, que seja aberta!

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