Alívio ou frustração. Esses parecem ser os sentimentos que predominam de forma excludente entre os eleitores. Findado o "show da democracia", Dilma Rousseff venceu Aécio Neves por cerca de três milhões e meio de votos. Foi muito pouco, como já era esperado nessa que se desenhou como uma das eleições presidenciais mais competitivas e emocionantes da história das eleições diretas no Brasil.
Primeiras reações
Com a divulgação dos resultados, "civis" nas redes sociais e jornalistas especializados em políticas nos grandes canais de televisão começaram a fazer interpretações intringuantes. Um comentarista de um grande canal "culpou" Minas Gerais pelo derrota de Aécio Neves. Não faltou também gente bisonhamente defendendo a divisão do país em dois quase que seguindo a distribuição binária de estados em que venceu cada candidato -- como se as marcas do subdesenvolvimento na história do país fosse responsabilidade exclusiva das escolhas dos eleitores de uma ou outra região.
Aproveito para compilar algumas reflexões sobre os resultados e apontar algumas curiosidades nos resultados que me parecem ter passado desapercebidas. Aí vai:
1. Pesquisas de opinião: "In science we (should) trust"
Muito descrédito recaiu sobre os institutos de pesquisa. Foi um tanto compreensível dado o tamanho do erro nas estimativas do primeiro turno -- as pesquisas de intenção de voto apontavam que Aécio (Dilma) teria 26% (44%) dos votos válidos, tendo tido, de fato, 33,55% (41,59%). O que foi pouco comentado é que essas pesquisas de intenção sempre exibem erros relativamente grandes em relação aos resultados do primeiro turno -- em geral são erros não-amostrais, em grande parte produzidos por "erro" na hora de votar devido ao número maior de candidatos a ser escolhido -- mas tendem a cravar o resultado com impressionante precisão estatística no segundo turno. E não foi diferente nessa eleição: as sondagens de Ibope e Datafolha na última semana falavam em percentuais que acabaram sendo muito próximos do percentual de votos obtido por Dilma e Aécio. Estatisticamente, acertaram na lata!
2. Psicologia do eleitor "swing"
Na semana passada escrevi um post onde fiz considerações sobre a psicologia do eleitor "swing" -- os indecisos, os que abstiveram-se no 1º turno e os que votaram branco e nulo. Falei de três efeitos que poderiam atuar sobre esses eleitores: o "efeito underdog" (preferir o candidato que é esperado perder), o efeito "networked bandwagon" (seguir o voto das pessoas indecisas na sua "rede" social uma vez que elas comecem a se decidir) e o efeito "efeito ilusão pivotal" (a crença de que seu voto individual pode ser relevante para determinar o resultado da eleição).
Uma evidência anedótica do segundo efeito foi a declaração pública de voto de alguns jogadores de futebol (Fred e Ronaldinho) na esteira da divulgação do vídeo de Neymar Jr. declarando voto em Aécio.
Dito isto, o efeito que governaria o resultado previsto seria mesmo o terceiro: a "ilusão pivotal". A ideia era a seguinte: se parte desses eleitores "swing" acreditassem que há um empate técnico, desejariam aparecer para votar no segundo turno. O efeito obviamente recairia sobre eleitores dos dois candidatos. Mas o argumento em favor de um efeito final em favor de Aécio provinha da hipótese de que o custo a ser internalizado nessa decisão de se deslocar para o seu distrito eleitoral operaria como uma barreira maior para os eleitores de Dilma.
O fato que chegamos na sexta com um virtual empate técnico entre os candidatos, criava as condições ideias para testar a previsão, que tinha portanto duas partes: uma parte "qualitativa" (o sinal do efeito: votos "swing" diminuirão) e outra quantitativa (o tamanho do efeito: a mudança de votos terá suficiente para dar a vitória a Aécio Neves).
Conquanto a segunda parte da previsão tenha miseravelmente falhado, fui olhar os dados dessa e das últimas três eleições e constantei que eles são consistentes com a primeira parte da previsão: embora seja sempre verdade que, do primeiro para o segundo turno, (a) o percentual de votos brancos/nulos se reduz, e (b) o percentual de abstenções aumente, esses movimentos foram diferentes nessa última eleição na direção prevista: as abstenções aumentaram menos e os votos nulos/brancos diminuíram mais (a excessão é a redução de nulos em 2002).
A tabela abaixo mostra as diferenças entre os percentuais (de abstenções, nulos e brancos) de primeiro e o segundo turno das últimas quatro eleições. Há evidência, portanto, de que teve um efeito na direção prevista mas sem a intensidade suficiente para mais do compensar outros movimentos que acabaram dando mais votos para Dilma.
3. Boatos de que Aécio estava vencendo eram verdadeiros
Soube de fontes quentes que Aécio estava a frente de Dilma nas horas que anteciparam a divulgação. Em certo momento, quando faltavam cerca de trinta minutos para a divulgação do resultado, dizia-se que Aécio estava com 53%. Havia um clima de euforia entre amigos e conhecidos com quem compartilhei as boas-novas. Quando os resultados apareceram às 20h ficou a dúvida: a fonte estava falando a verdade? O gráfico abaixo mostra que sim: no eyeball, vê-se que Aécio chegou a estar mais de 10 pontos percentuais a frente de Dilma com mais da metade das urnas apuradas (!), com Dilma passando-o apenas com a contagem dos votos do decil final das urnas sendo apuradas. Close call!
4. "Mas e se...": Existe um culpado?
Resultado computado, os que torciam pela vitória do senador procuravam um "culpado". Muitos analistas foram ligeiros em vaticinar MG como o culpado (a diferença foi de cerca de 500 mil votos apenas...). Os que votaram nulo e se abstiveram-se de votar (mais de 25% do eleitorado) foram "culpados" também.
Muitos outros disseram que o culpado era a região Nordeste -- nos estados da região, Dilma teve, de fato, expressivos percentuais de votação; excetuando-se Alagoas, Dilma teve diferenças de mais de 30 pontos percentuais em todos os estados da região (foi de mais de 50 pontos percentuais no Ceará, Maranhão e Piauí.). como já aconteceu no primeiro turno, discursos de ódio contra a região abundam. Até os que votaram nulo e se abstiveram-se de votar (mais de 25% do eleitorado) foram "culpados".
A ideia de geolocalizar a "culpa" pela derrota é no mínimo boba, dado que estamos em um sistema onde o que importa é a contagem nacional de votos, tendo os votos de lugares diferentes rigorosamente a mesma influência no resultado final (diferentemente dos EUA onde o vencedor em cada estado "takes ti all"(votos do estado)).
O tratamento pouco cuidadoso dos dados pode ser, em parte, responsável por essas confusões. Falo especificamente desses mapas binários de votação por estado (pintado de vermelho se Dilma ganhou, e azul se Aécio venceu) que muito aparecem nos jornais (ver o exemplo abaixo com dados do segundo turno dessa eleição).
O que esses gráficos escondem é que Dilma teve votações expressivas em absolutamente todos os estados (ver gráfico abaixo, da web, com cada estado sendo colorido conforme proporção de tovo obtido por cada candidato). Em Santa Catarina por exemplo, onde Aécio venceu com a maior diferença percentual absoluta, Dilma obteve 35% dos votos válidos. No Rio Grande do Sul, Aécio venceu mas Dilma obteve quase 47% dos votos. Em São Paulo por exemplo, Dilma obteve praticamente 8.5 milhões de votos, metade dos quais seriam mais do que suficientes para ter dado a vitória a Aécio. Ou seja: é sempre possível definir uma aglomeração espacial grande o suficiente para fazer o exercício contrafactual de que, tivessem Dilma tido, sei lá, metade dos votados que obteve, o resultado da corrida presidencial teria sido outro. O exercício é obviamente inútil: Dilma venceu com votos de eleitores de todos os lugares. Period.
5. Quem tem medo da polarização?
A disputa acirrada parece ter deixado muita gente impressionada. Faz sentido. Afinal, nunca experimentamos, desde a abertura, uma eleição tão concorrida como essa. O que não faz absolutamente nenhum sentido é tomar isso como sinal de que há uma divisão no país que justifique falar em segregação.
Obviamente que essas são reações emocionais de quem está tendo dificuldade de assimilar a verdade: Dilma venceu e o fez dentro das regras do jogo democrático, de modo que o resultado deve ser absolutamente respeitado.
Verdade seja dita que logrou a vitória com uma campanha eticamente reprovável, que fez uso do medo -- como quando dizia que a independência do Banco Central era equivalente a colocar banqueiros a decidir preço e salário! -- e que insiste em difundir a cretinice de que ricos, bem-sucedidos, e quem "a direita" do partido estiver, não podem genuinamente desejar a melhoria da renda e da educação das pessoas mais pobres. Mas há quem diga que não há santos e que a "politics of fear" dificilmente vai deixar de ser usada pelos incumbentes, seja de que partido for.
O mais importante aqui é lembrar que essas polarizações são naturais e podem até ser vistas como sinais de maturidade da nossa jovem democracia. Os mapas eleitorais abaixo são ilustrativos desse ponto -- todos mostram níveis razoáveis de polarização entre dois grupos políticos em eleições recentes em países com uma insuspeita tradição democrática (Reino Unido, EUA, Canadá, Itália e França). "Lets embrace" nossa polarização (também) como algo saudável.
Eleições Gerais no Reino Unido 2010
Eleições Presidencias nos EUA/2012
Eleições Gerais no Canadá 2011
Eleições Regionais na Itália 2010
Eleições Presidenciais - 1ºTurno - na França 2012
5. Os eleitores do PT e do PSDB são diferentes?
Dia desses em uma aula de "teoria dos jogos", um aluno me perguntou porque o equilíbrio de Nash não necessariamente envolvia as pessoas jogando as estratégias que maximizam o payoff global delas. Eu disse: "pra que isso fosse o caso (no jogo particular que olhávamos), teríamos que relaxar uma hipótese central para toda a disciplina de economia, e uma que não sei se nos levaria muito longe: a hipótese de que as pessoas que habitam nossos modelos são self-interested".
Pois bem. Essa história deve parecer boba e auto-evidente para economistas mas ilustra um aspecto (unificador) que se esconde por trás das dezenas de justificativas que foram e serão utilizadas para votar em um candidato ou outro, qual seja: o de que votamos governados pelo interesse próprio (e não há nada errado com isso!).
Senão vejamos: é ideologia socialistóide ou auto-interesse que faz o estudante universitário, recebedor líquido de transferências (não tem renda própria, logo não paga imposto do próprio bolso) preferir plataformas políticas que advogam mais governo? É desinformação ou auto-interesse que faz o sujeito classe média baixa, do Nordeste ou donde for, que tem (ela, ou seus filhos, ou seus familiares) se beneficiado de vários programas do governo federal (BF, MCMV, FIES, Pronatec, Minha Casa Melhor) preferir a continuidade do governo que massificou esses programas? É ideologia liberalóide ou auto-interesse que faz com que o profissional graduado -- economista, advogado, engenheiro, médico etc, no topo da pirâmide distributiva --, que vê quase metade de sua renda evaporar na forma de tributos com pífio retorno, preferir um governo mais "business-friendly" e com uma mão tributária mais leve?
A desgraça do analfabetismo econômico é acreditar que há uma inconsistência intrínseca de longo prazo entre as aspirações desses grupos, é deixar que esses discursos ideológicos divisionistas e arcaicos impeçam de enxergar o que o Reverendo William Boetcker disse no seu famoso décalogo: "Você não pode elevar o empregado rebaixando o empregador. Você não pode ajudar o pobre destruindo o rico".