segunda-feira, 24 de março de 2014

Brasil, Egito e democracia minimalista

O golpe militar de 1964, disse Francisco Weffort em seminário no Dpto. de Ciência Política da USP semana passada, representou um interregno na consolidação da democracia no Brasil. Parece uma obviedade, mas não é. Pois interregno não é apenas interrupção. É interrupção temporária de um processo ou movimento que inevitavelmente retomará seu curso mais adiante. Demorou, mas de fato a democracia brasileira, que estava sendo construída a trancos e barracos no país desde 1945, reemergiu em 1985 (ou em 1989, fica a gosto do freguês).


Ressurgiu muito mais sólida do que no período antecedente. Há várias evidências factuais a esse respeito. Uma basta, a meu juízo, para provar essa afirmação. Entre 45 e 64, dos quatro presidentes eleitos, dois terminaram seus mandatos. No atual ciclo democrático, em sete mandatos (incluindo Dilma), apenas um não foi integralmente cumprido. E não houve quebra da regra democrática no impeachment de Collor. Talvez, nem mesmo o próprio Collor entenda que foi vítima de golpe.


Terá sido então o golpe militar, paradoxalmente, um interregno necessário ao fortalecimento da democracia no país? Na minha opinião não pois, em vários sentidos, a democracia brasileira estava se institucionalizando. Há boas obras na literatura da ciência política brasileira que mostram isso. Destaco um: Democracia na urnas, de Antônio Lavareda.


Acho que o golpe, pior do que necessário, foi inevitável. Esquerda e direita, era todo mundo golpista naquele momento, afirmou Weffort no seminário. Esquerda, insuflada pela União Soviética, e direita, pelos Estados Unidos.

Em meio a tantas pressões, a política não conseguiu tratar os antagonismos pelas vias institucionais. PTB, PSD e UDN e seus principais líderes políticos – Jango, Juscelino e Lacerda – foram atropelados pela força militar.

Sempre que a política é suplantada pela força, a violência irrompe. Foi o que aconteceu no Brasil 50 anos atrás e no Egito mais recentemente. As circunstâncias foram diferentes, mas o pano de fundo é o mesmo: a impossibilidade de resolver conflitos pela via institucional política leva à violência, mortes, torturas, atentados etc.

O drama egípcio está bem retratada no documentário The Square, que concorreu ao Oscar neste ano. Os personagens centrais do documentário são jovens ilustrados da classe média egípcia protagonistas da longa ocupação da praça Tahrir. Jovens, em sua maioria, sonhadores e idealistas, autores de frases do tipo “as ruas são a nossa urna”. O filme mostra bem a angustia se apoderando deles à medida que percebem que se livraram da ditadura de Mubarak para cair em um regime teocrático promovido pela Irmandade Muçulmana. A angústia aumenta quando Mohammed Morsi é derrubado pelos militares que instauram um regime bastante repressivo, com foco principal sobre a Irmandade Muçulmana, mas que também baixou o porrete nos jovens sonhadores da praça Tahrir.

A substituição da democracia pela força em 1964 no Brasil e a dificuldade da democracia se estabelecer no Egito remetem ao conceito de democracia minimalista.

Schumpeter é reconhecido na Ciência Política contemporânea como o fundador desse conceito. Mas vou usar a leitura mais contemporânea da democracia minimalista dada por Adam Przeworski. Ele escreveu um excelente paper em defesa do conceito de democracia minimalista. (“Minimalist conception of democracy: a defense”, in Ian Shapiro and Casiano, Democracy´s Value. Cambridge: Cambridge University Press, 1999).


Logo no primeiro parágrafo, ele anuncia o seu objetivo. “I want to defend a ‘minimalist’, Schumpeterian, conception of democracy, by minimalist, Popperian, standards. In Schumpeter conception, democracy is just a system in which rulers are selected by competitive elections. Popper defends it as the only system in which citizens can get rid of government without bloodshed”.

Przeworski nota que o conceito de democracia aparece muitas vezes atrelado a preceitos normativos, como representação, accountability, igualdade, participação, justiça, dignidade, racionalidade, segurança, liberdade etc, positivamente valorados pelos teóricos da democracia. “Democracy”, diz ele “has become an altar on which everyone hangs his or her favorite ex voto”.

A pergunta fundamental de Przeworski é se a eleição, além de ter valor intrínseco como método de selecionar os governantes, agrega também algo mais à democracia. Para respondê-la, seleciona três elementos largamente relacionados à democracia: racionalidade, igualdade e representação. Examina-os, ora do ponto de vista da solidez e coerência a diferentes abordagens teóricas aplicadas a eles, ora com base na aderência dessas teorias à realidade. No final descarta-os todos. Não se pode dizer inquestionavelmente que o sistema democrático seja racional ou leve à racionalidade, nem que solucione plenamente o problema da representação ou promova a igualdade.

Mas isso não torna a democracia irrelevante. A democracia é importante por que é um sistema que soluciona conflitos de maneira não violenta. E consegue fazer isso por que suscita a livre competição pelo voto ao mesmo tempo que confere legitimidade à autorização dada para que o indivíduo ou grupo mais votado governe toda a sociedade. Assim, “in the end, the miracle of democracy is that political forces obey the results of voting. People who have guns obey those without them. (...) Conflicts are regulated, processed according to rule, and thus limited.”

Isso não significa que a democracia não possa ser aperfeiçoada por meio de avanços institucionais. Contudo, diz Przeworski, ela é importante mesmo se não pudesse ser aperfeiçoada e mesmo desprovida de “penduricalhos” como igualdade, justiça, racionalidade etc.

Os penduricalhos podem torná-la mais atraente, mais vistosa. Porém, brasileiros em 1964 e egípcios nos últimos anos hão de concordar, se a democracia conseguir impedir a conflagração violenta entre grupos políticos já terá feito bastante.



6 comentários:

  1. Obrigado Ricardo pela reflexão. Seus ùltimos textos são excelentes.

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  2. Muito bom! Democracia para muitos parece um penduricalho inútil mesmo. O caso do Egito é um triste exemplo. Sem política a coisa não anda, chutar o pau da barraca nunca resolve.
    Mas tendo golpistas dos dois lados no Brasil da 1960, uns apoiados pela ditadura socialista dos URSS e outros pela democracia liberal dos EUA, o golpe militar permitiu que a transição para a retomada de democracia fosse pacífica. O golpe não foi pacífico, mesmo comparar se foi menos homicida do que a alternativa me parece ruim, mas que a volta de democracia só seria do jeito que foi com os milicos. Mesmo não sendo necessário nem positivo, já que era inevitável, foi a melhor opção.

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  3. Egito é um caso clássico, mesmo quando um lado não tem apego democrático nem adesão incondicional aos direitos individuais, como a irmandade, a política tem que morder a fronha e se manter no jogo político. Quando quebra tudo dizendo que os outros são anti-democráticos perdem o único valor que a política fornece.

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  4. Que post bacana! Obrigada, Ana

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  5. Os EUA não apoiaram o golpe militar em 64. Para se ter uma ideia, eles não sabiam da intenção de golpe aqui até um dia antes do mesmo ocorrer. Não há nenhuma prova de que a CIA estava envolvida no golpe militar. Do contrário existe vários documentos provando a interferência e ajuda da KGB no fomento do golpe que a esquerda estava planejando naquele momento.

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