Dois artigos sobre política no Brasil publicados na imprensa me chamaram a atenção na semana passada. Foram escritos por Rafael Cortez (Estadão 06/08, aqui) e Marcus Melo (Valor 08/08, aqui, para assinantes ou cadastrados), cientistas políticos de boa – e justa - reputação acadêmica (Lattes respectivos aqui e aqui).
Curiosamente, nem resvalam no mais importante tema político do momento: a eleição presidencial. Calar sobre uma eleição de aspectos tão imprevisíveis e tão desafiadora ao conhecimento acumulado pelos cientistas políticos brasileiros talvez seja mesmo a atitude mais ajuizada neste momento. Rafael Cortez que, como eu, é consultor, não pode se dar a esse luxo sempre. Marcus Melo, que, até onde sei, está apenas na academia, pode.
Não terem sequer mencionado as eleições não rebaixa a importância do que escreveram. Ao contrário, ressalta a qualidade dos artigos, pois o cerne das discussões que ambos levantam diz respeito a um tema que sobrepassa o quiproquó eleitoral: a higidez do sistema político brasileiro (SPB), o qual é adequadamente descrito pela denominação “presidencialismo de coalizão”.
Sistemas políticos (democráticos) hígidos são capazes de atender minimamente a dois requisitos fundamentais: ser representativo, e, dessa maneira, cercar-se de legitimidade para governar a sociedade; e ser operacional, isto é, ter capacidade de efetivamente governar a sociedade, ou seja, de tomar decisões e de implementá-las.
Pois bem, Rafael Cortez discute o “déficit representacional” do sistema político brasileiro; e Marcus Melo a capacidade de o nosso presidencialismo de coalizão operar de maneira eficiente a governabilidade do país. Nenhum deles, é bom frisar, batem bumbo contra o SPB. Nem Cortez diz que ele não é capaz de representar plenamente a sociedade; nem Melo diz que estamos à deriva, “ingovernados”. Mas ambos reconhecem que há problemas na engrenagem do presidencialismo de coalizão brasileiro.
Cortez afirma que o “presidencialismo de coalizão dificulta o monitoramento e a responsabilização dos diferentes partidos” o que fortalece o sentimento, bastante arraigado atualmente em vários segmentos da sociedade brasileira, de que o sistema político não a representa. A incapacidade de atribuir responsabilidades políticas aos agentes (partidos) partícipes das coalizões fomenta a demanda social por mais participação, isto é, por meios que ampliem institucionalmente a influência sobre os centros de poder no Executivo e no Congresso, exigência com a qual as democracias representativas – e não apenas a brasileira – têm dificuldade de lidar.
Melo, por sua vez, reconhece que está mais custoso operar o nosso presidencialismo de coalizão por causa da contínua fragmentação partidária e da ampliação da heterogeneidade ideológica das coalizões federais. Ele não afirma, mas insinua, que os custos de transação necessários para manutenção de coalizões cada vez maiores e mais díspares do ponto de vista ideológico já podem estar acarretando perdas marginais ao sistema, inclusive porque – o que remete ao artigo de Cortez – corrói a sua legitimidade. Assim, “a representação política inverte sua lógica e converte-se em responsividade oportunista”.
Melo, contudo, embora admita existirem causas de ordem institucional – basicamente, o federalismo e o sistema de representação proporcional – favoráveis à perda de eficiência do presidencialismo de coalizão, aponta também para má gerência do modelo. Diz ele que o sentimento de insatisfação com o SPB aumenta “quando o governo não tem agenda clara e o estilo de governo se abastarda no atendimento a demandas setoriais. Assim, se a fonte da insatisfação são setores empresariais a resposta é redução de tarifas aqui, desoneração de impostos acolá. Se não há agenda programática clara e o pragmatismo político não encontra limites, a inteligibilidade da política fenece”. Nem é preciso dar nomes aos bois.
Tanto Cortez quando Melo pertencem, por assim dizer, a uma linhagem da ciência política brasileira constituída a partir dos anos 90 a qual, com base em trabalhos empíricos e em comparações com outras democracias, construiu uma narrativa positiva para o presidencialismo de coalizão tupiniquim. Não são críticos contumazes do SPB, o que dá mais relevo às dúvidas substanciais que estão levantando a respeito de sua capacidade de cumprir as funções representacionais e governativas.
A discussão, creio, está apenas começando. Talvez tenha chegado o momento de rever algumas convicções da ciência política brasileira a respeito do nosso presidencialismo de coalizão. A primeira questão a ser respondida é: alguma reforma institucional é necessária ou basta melhorar o gerenciamento do sistema?
De todo modo, está claro que não foi só a economia brasileira que perdeu produtividade. O sistema política também se tornou mais improdutivo. Mais uma razão para nos preocuparmos com 2015, seja qual for o desfecho de 2014.
Manuel Ferreira Filho, em Constituição e Governabilidade, já deu cabo do assunto.
ResponderExcluirAté o Taleb escreveu melhor sobre isso.
Eu acho que mais complicado do que o problema do "presidencialismo de coalizão" é a centralização de poder no presidente. Infelizmente, nosso sistema é muitíssimo centralizado, de modo que estados com questões completamente distintas estão sujeitas às mesmas normas. É impossível ao executivo/legislativo determinar um modelo ótimo que englobe todos os estados. Sempre terá um que será mais prejudicado do que os outros.
ResponderExcluirDaí essa coisa de fundo de participação, peso nos votos no congresso etc sempre beneficiará estados mais improdutivos em detrimento dos mais produtivos. O incentivo à políticas populistas será sempre enorme, e que se dane o estado que entende que um modelo de crescimento econômico que se prese requer um ambiente econômico adequado. Vamos continuar com legislações bisonhas de tributação, com impostos em cascata e estado gigantesco criando distorções no lado da receita (o que é inevitável, mas os impostos sobre impostos têm um efeito ainda pior) e no lado da despesa (sempre pagando preços acima do mercado e tomando decisões não - ótimas).
Enfim, isso aqui é tudo uma aberração!
Enfim, se é pra fazer uma reforma política, poder-se-ia derrubar tudo e começar do zero (se bem que há uma chance enorme de fazerem tudo de um modo AINDA PIOR).
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