Em 2008, Joanne K. Rowling, a bilionária novelista britânica autora da série
Harry Potter, fez o prestigioso discurso de colação de grau da Universidade de Harvard – chamado de
Commencement Speech (o vídeo está
aqui). No meio do discurso, ela diz o seguinte (traduzido):
“a vida é difícil e complicada e além do nosso total controle; a humildade em saber isto vai capacitar você a sobreviver suas vicissitudes”.
Legal. Mas há uma meia-verdade aí. De fato, há muito de aleatoriedade nos caminhos que nossa vida toma. De tal modo que a vida pode bem ser vista como uma grande loteria, na qual estaremos sempre encarando a possibilidade de ganhar ou perder. E se perderemos ou ganharemos vai mesmo sempre depender de eventos que estão fora do nosso controle.
Mas ao contrário do que sugere Dona Harry Potter, o destino das nossas vidas não é tão aleatório assim. É razoável acreditar que fazendo esforço (estudando, adquirindo habilidades, trabalhando pesado etc) seremos capazes, senão de impedir com absoluta certeza, ao menos de reduzir as chances de ter insucesso na vida. É aquela velha história: é preciso estar preparado para ter sorte.
Mais fácil dito do que feito
Mas preparar-se para ter sucesso envolve trocas no tempo que nem todos estão preparados para fazer – o vulgo “sacrifício”. Frequentemente, não nos falta o intento mas falta a disciplina, a resiliência em tolerar adversidades. Não é novidade que ao menos parte desse problema de autocontrole emana da nossa dificuldade em administrar os conflitos que existem na vasta maioria de nós entre nossas emoções e nossa razão: sabemos que é importante ler aquele livro, fazer aquele curso, trabalhar mais naquilo...mas outra parte de nós não está muito interessada nisso: quer lazer, diversão.
Mas o que diabos tem isso a ver com economia? Bom, como as dificuldades de exercemos autocontrole podem ser vistas como expressões de um conflito entre razão e emoção, podemos pensar nisso como um “problema de agência” (conflito entre partes) cuja solução envolve desenharmos um contrato que dê os incentivos corretos para as partes envolvidas para agirem em nosso interesse.
Um modelo de 2 em 1
Vamos imaginar então que cada um de nós tem dois lados, ou como dizem os psicólogos, dois selves. Um é o self racional. É o lado “sério” de nós. É o lado que planeja as ações que acreditamos trarão o sucesso que queremos para a nossa vida. É o lado que diz que precisamos estudar ou trabalhar por 60 horas por semana e coisas do tipo. O outro self é o emocional. É o lado meio bon vivant de nós. É o lado que diz um fim de semana na praia ou uma sexta-feira mais curta em favor de umas horinhas de papo com os amigos no boteco é sempre preferível a qualquer alternativa desenhada pelo self racional. O “sucesso” do lado racional passa portanto em manter o lado emocional sob controle.
Mas não se engane: a despeito da natureza conflituosa dos nossos selves, ambos trabalham para nós. Nosso problema seria então o de desenhar um “contrato” que crie consistência entre as ações do lado racional e do lado emocional e maximize o nosso bem-estar – que vou descrever como o saldo de ganhos e perdas do “eu” emocional e do “eu” racional. Mas como fazer isso?
Setup
Vamos imaginar que o self racional age como se propusesse um contrato para o self emocional. Como agente e principal são a mesma pessoa, não é nenhuma grande arbitrariedade considerarmos que as ações do self emocional são observadas pelo self racional. É como se estívessemos tratando de um caso em que, como se diz na literatura econômica, há informação completa. Pois bem. Em ambiente com informação completa, esse contrato (chamado de “first best”) pode ser um no qual o self emocional fará um esforço de se manter “in check” e aumentar as chances do self racional implementar os planos que, se tudo der certo, trarão sucesso para o indivíduo “dono” dos selves.
Fazer esforço é necessário mas não suficiente para ter sucesso. Afinal de contas, como dito no começo do post, a vida não está completamente sob nosso controle. Para os fins desse modelinho que estou construindo, isso vai significar que o mundo estará em um de dois possíveis estados: um estado “bom” (1), onde os esforços de auto-controle do self emocional funcionam e um estado “ruim”(2) onde nosso auto-controle falha e o lado emocional, o bon vivant, domina nossas ações e, por suposição, sabotam os planos de sucesso desenhados pelo lado racional. O estado “bom” tem probabilidade q de ocorrer e o estado “ruim” tem probabilidade (1-q) de ocorrer. A segunda e terceira coluna da tabela abaixo descreve os ganhos (G) de cada self em cada estado possível do mundo. Os ganhos do indivíduos são apenas a soma dos ganhos dos selves – o que captura a ideia de que, na medida do possível, o indivíduo deve satisfazer a ambos.
O que droga são essas letras?
p é o “preço” que o self racional “vende” o contrato de auto-controle para o self emocional – entrando portanto com um sinal negativo na conta do self emocional. Mas o self emocional terá que ser recompensando para aceitar esse contrato de autocontrole. Essa compensação seria o x. O g é o ganho do self racional quando o autocontrole funciona. O l é a perda que ambos os selves encararão pela falha do auto-controle. O l^E é o bônus emocional experimentado pelo self emocional quando o autocontrole falha – a contrapartida prazerosa que frequentemente está envolvida com a perda de auto-controle. O e é o esforço psicológico do self emocional de conter seus impulsos.
Como deve ser esse contrato? Solução
Aceitando minhas suposições, o problema agora resume-se ao seguinte: o self racional precisa definir o nível de esforço do self emocional, o “preço” e o prêmio oferecido ao self emocional para aceitar o pacto de fazer um esforço se manter “sob controle” (estado “bom”). Eu vou então definir o problema do self racional como sendo o de maximizar a utilidade esperada do indivíduo – que nada mais é do que a média ponderada do valor subjetivo dos ganhos em cada estado do mundo, onde os pesos são as probabilidades de ocorrência de cada estado – condicional à satisfação das restrições de participação do self emocional e de si mesmo. No caso, o valor esperado dos ganhos do contrato tanto para o self racional quanto para o self emocional devem ser ao menos tão bom quanto quanto o nível de utilidade alcançável na ausência desse contrato.
Oh loco meu! Quem é "agente" e quem é "principal" aqui?
Uma observação para o leitor familiarizado com um pouco de economia. O problema aqui é similar ao de desenho de contrato ótimo com risco moral e informação completa, com um tratamento admitidamente não-convencional de quem é agente e principal: pois que aqui temos um “principal” (indivíduo inteiro), um “principal-agente” (self racional) e um agente (self emocional). Uma montagem diferente do problema deve quase certamente gerar uma solução diferente da que obtive. Mas a motivação do post, como quase sempre nesse blog, é de ilustrar o uso de economia para problemas cotidianos e, com sorte, “get the discussion going”.
Tá; mas qual o resultado?
Aceitando-se a forma como montei o problema de maximização do self racional e as restrições que devem ser satisfeitas, é possível usar certos métodos matemáticos (Lagrangianos) para resolver o problema do self racional.
Vou poupá-lo da sopa de letras e macumbas algébricas envolvidas – que encheram um trio de páginas – e vou direto ao resultado principal, qual seja: o de que o “contrato” ótimo que deixa o indivíduo e seus selves satisfeitos é um em que o prêmio x oferecido ao self emocional, no estado de sucesso, pelo esforço de auto-controle deve ser igual à ao custo do “contrato” para o self emocional, p, mais a metade da soma de g, o ganho do self racional quando o auto-controle funciona (estado “bom”) com e, o esforço psicológico do self emocional.
E daí meu bem?
Esse resultado principal tem uma implicação prática interessante: para contar com a colaboração do
self emocional na implementação das ações de sacrifício que aumentarão nossa chance de sermos bem-sucedidos, o
self racional precisa oferecer uma compensação maior do que o preço
p do contrato pago pelo self-emocional. Isso pode ser visto como uma justificativa para a ideia de que qualquer esforço de autocontrole necessário para desempenharmos certa tarefa deve ser recompensada com um belo agrado para nós mesmos. Não deixa de ser uma bela ilustração de como os incentivos importam.
É verdade que mesmo nesse modelo, esforço de autocontrole é importante mas não garante necessariamente sucesso – afinal, como ilustra a carreira da autora de Harry Potter, o sucesso nas nossas vidas é mais aleatório do que desejamos admitir. Mas, como diz um provérbio americano e ilustra a vida de muitos, uma coisa é fato: sucesso é uma escada que não se sobe com as mãos no bolso…