quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Criminalizar o mercado das drogas funciona?

Um artigo publicado esta semana no British Medical Journal Open sugere que as políticas de desmantelamento do lado da oferta do mercado de drogas não estão funcionando. Utilizando dados longitudinais de preço, pureza e apreensão de drogas (maconha, cocaína, heroína e ópio) coletados desde os anos 90 por órgãos governamentais que monitoram esse mercado, os autores mostram que os preços reais dessas drogas caíram cerca de 80% entre 1990 e 2007, enquanto que a pureza delas aumentou. Isso tudo a despeito do aumento no volume de apreensões durante esse período (clique aqui para ver o artigo).

O gráfico abaixo ilustra o provável movimento de oferta que produziu esse resultado (pode ser tambèm que a demanda tenha se deslocado pra baixo e a pureza ter aumentado como resultado de uma demanda menor mas mais exigente na qualidade do produto; mas è improvável que esse tenha sido a causa na mudança de preços). Note que este não é o efeito do maior monitoramento policial sobre esse mercado -- que seria no sentido de deslocar a oferta para a esquerda e, tudo mais constante, elevar o preço das drogas. É uma ilustração do movimento final da oferta produzido por uma série de eventos ocorridos ao longo dos últimas décadas.


Preços
Para ter uma ideia de preço, coloquei abaixo um gráfico com dados de um relatório do departamento de drogas e crimes das Nações Unidas, publicado pela The Economist. O gráfico mostra o preço da cocaína (2011) em vários países. No lado mais à esquerda do gráfico, é mostrado o percentual de usuários em cada um deles.



Criminalização aumenta a qualidade?
É provável que a criminalização do mercado tenha como subproduto a maior profissionalização do setor e a adoção de tecnologias melhores com retornos crescentes de escala. Afinal, o maior esforço de apreensão das forças policiais aumenta o prêmio de risco da atividade exigido pelos participantes da cadeia de produção. Os lucros econômicos desse mercado - que eram provavelmente maiores no passado do que são hoje - acabaram atraindo mais gente para dentro dele. A pressão competitiva que isso gerou (do lado da oferta) explicaria então a queda considerável no preço dessas drogas e aumento da pureza concomitante com maior apreensão.

Legalizar ou não legalizar, eis a questão
Se a evidência parece sugerir que a proibição não mexe nas curvas de demanda e oferta como se esperava (deslocando a oferta pra cima e, ao fazer isso, "preço-expulsando" consumidores desse mercado) para que a proibição fosse justificável, tampouco parece haver razões teóricas que, sob hipóteses razoáveis, justifiquem economicamente a criminalização desse mercado.

A proibição cria um mercado paralelo onde tudo que é típico do funcionamento de qualquer qualquer mercado -- a celebração de transações de compra e venda, as disputas comerciais por maior share dos consumidores, a tentativa de erigir barreiras à entrada de novos competidores, as quebras de contrato etc -- está freqüentemente envolvido em algum tipo de violência, muitas vezes letal. E não só para os participantes desse mercado, mas para inocentes que nada tem a ver com a história. Quando morava no Rio, lembro de voltar do jantar no começo da noite e ter me encontrado, junto com um colega, bem no meio de um tiroteio entre policiais e traficantes em pleno asfalto quase à beira da praia de Copacabana. Rimos depois da situação surreal -- tivemos que correr e nos esconder atrás dos veículos -- mas as coisas poderiam ter tido outro desfecho... 

O fato é que a política atual de criminalização tem custos consideráveis e benefícios não muito claros. São custos tanto de law enforcement quanto de capital humano destruído como externalidade. Estudos estimam que, só nos EUA por exemplo, a guerra contra as drogas custe algo acima dos US$ 40 bilhões, sem falar nas receitas tributárias de montante similar que a ilegalidade força o governo a deixar na mesa. A solução mais básica para o problema de externalidade é simplesmente taxar o agente criador da externalidade ou conceder direitos de propriedade (nesse caso, talvez, sobre a ocupação risk-free do espaço) e permitir que tais direitos sejam negociados. Mas a natureza ilegal do mercado impede qualquer solução desse tipo.


O que seria socialmente mais barato: criminalizar ou descriminalizar?
É preciso ter claro que há nesse assunto apenas escolhas conflituosas a serem feitas. Ao criminalizar o mercado da droga, por uma lado contribuímos para a redução do consumo. Mas por outro gera uma série de externaldiades negativas -- basicamente todo tipo de violência relacionada às drogas. Ao descriminalizar o mercado das drogas, não teríamos esse custos com externalidades mas teríamos outros tipos de custos associados ao vício. Mas é possível mostrar que dependendo de comos cada um desses tipos custos respondem à mudança no número de drogados, os custos socias totais podem ser menores com a descriminalização.  

O gráfico abaixo procura ilustrar essa ideia. No eixo x represento o percentual da população que seria usuário regular de drogas. No eixo y represento o custo em unidades monetárias. A curva verde representa os custos do vício (para os viciados, para familiares que estão em volta dele etc). Esse custo cresce no número de drogados. A curva azul representa o custo com as externaldiades da tentativa de criminalizar a atividade e reduzir o número de usuários. Esse custo aumenta à medida que tenta-se dar um "crack down" no mercado e reduzir os usuários à algo próximo de zero. A curva vermelha é a soma desses custos. É possível mostrar que dependendo das inclinações dessas curvas -- isto é, dependendo de como esses custos aumentam/diminuem à medida que cresce/diminui o número de usuários -- os custos sociais totais da droga seriam menores em um cenário onde há descriminalização. Mas é possível que seja o contrário também. 


Drugs are bad
Make no mistake: as drogas são ilegais por uma razão. Seu consumo tem efeitos devastadores sobre o corpo, tanto mais quanto maior o consumo. Veja o gráfico (publicado pela The Economist) abaixo onde experts em malefícios das drogas fizeram un ranking de 20 delas (ilegais e legais) em termos do mal que fazem à saude dos usuários e de terceiros.



So what?
Mas até aí nada demais diriam alguns: a droga faria apenas parte de um rol já extenso de produtos que, consumidos abusivamente seriam também letais para a saúde física e mental do sujeito -- por exemplo, cigarro, álcool e gordura. E assim como não foi criminalizado nem o consumo nem a venda desses produtos, também não o deveria ser nem o consumo nem a venda de drogas; afinal, não haveria nada de especial nelas.

Argumentum ad consequentiam
O argumento de proibição -- uma tentativa, no limite, de simplesmente destruir ao menos um dos lados da tesoura Marshalliana no primeiro gráfico (oferta ou demanda) -- repousa sob a hipótese de que haveria um crescimento vertiginoso no consumo fosse a proibição relaxada; tanto oferta quanto demanda aumentariam. Isso parece ter pouco apelo junto à vasta maioria das pessoas que nunca consumiu essas substânciass (seriam elas potenciais consumidores reprimidos, à espera de uma queda no preço ou em uma conveniente disponibilidade?). E também não foi o que aconteceu em países que adotaram políticas mais liberais. Portugal, por exemplo, descriminalizou todas as drogas em 2001. Mais de dez anos depois, os números mostram que não houve um aumento de usuários.

Tampouco parece haver argumentos "filosóficos" que justifiquem a proibição. Se vivemos em uma sociedade que advoga pela autonomia do indivíduo em fazer suas escolhas, é difícil não deixar que isso implique também no direito de fazer qualquer escolha, inclusive ruins, que julgue melhor para si mesmo, desde que essa não imponha custos diretos sobre terceiros.

Eleitor Mediano
A despeito da evidência e dos argumentos que muitos colocam em favor de uma regulação do mercado -- veja, por exemplo, entrevistas de Milton Friedman (aqui) e Jeffrey Miron (aqui) sobre o assunto --, há pouco sinais de que o mix políticas públicas nessa matéria será reformado em direção a algo mais liberal (o Uruguai que me desminta). 

Sequer dá para dizer que esse estado de coisas é explicado pelo "Teorema do Eleitor Mediano" (segundo o qual uma eleição por regra majoritária produzirá um resultado que é preferido pelo eleitor mediano): surveys sugerem que a maioria das pessoas é a favor da legalização ao menos de algumas drogas (ver, por exemplo, esse aqui feito pelo senado federal).


"Sound Public Policy Depends On Sound Economic Science"
Talvez exista uma análise de custo-benefício amparando a continuidade da política atual. Seria bom torná-la pública. Por que a julgar pelos dados conhecidos, esse parece mais um exemplo (ao lado das regulações que criam um "salário mínimo") onde teoria e evidência não conseguem influenciar a formulação de políticas públicas. Pior para o contribuinte.




15 comentários:

  1. http://www.youtube.com/watch?v=ImuDtBa1PI4

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  2. 1.Portugal não é um bom exemplo para saber o que vai acontecer, se comparado ao Brasil.
    2. Legalizar as drogas vai aumentar a quantidade demandada em relação à situação atual. Não há razão para ser no sentido contrário.
    3. A primeira escolha da experimentar a droga é racional. As seguintes também são, considerando seu grau de viciamento?
    4. As externalidade negativas não foram totalmente calculadas compensar os benefícios. É um risco enorme.
    5. Os traficantes permanecerão no crime. Não sei se em mais graves ou menos graves.

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    1. 1. Se Portugal não é, ninguém vai ser. O que importa aqui é ver o que esses experimentos em larga escala sugerem em termos de efeito.

      2. Vai aumentar sim. Mas a ideia é que a incidência de coisas indesejáveis vai diminuir (morte de inocentes, custos com legal enforcement). O estado arrecadaria mais, o que poderia ser usado para financiaar campanhas educacionais e o tratamento dos usuários, que seriam facilmente identificáveis.

      3. O que é racional? Quem vê o conjunto de informação e os argumentos da função de utilidade do sujeito ao lado? Visto com os meus óculos, se drogar não faz sentido algum. Mas meus óculos são meus óculos.

      4. Pode ser. Mas ao menos liste pros e cons pra gente saber que externalidades são essas. Estudos da Unifesp dizem que no Brasil cerca de 2% da população é usuários de drogas. Quantos bilhões vale a pena pagar para deixar isso em 2% e não em 3%, 4%, 5%... Meu ponto é: não faz sentido econômico querer acabar com algo indesejável a QUALQUER CUSTO.

      5. Provavelmente sim. Mas o sucesso de uma policy não é medido por métricas binárias (ou temos zero traficante ou não vale à pena), ainda mais se se refrem a uma única dimensão do problema (o núm. de traficantes na rua).

      Bottom line 1: queria ver public policy baseada em números, sound analysis. Queria ver cenários de custo-benefício do que temos hoje versus um cenário onde o mercado é legal e essas merdas passam a ser vendidas/reguladas como é o àlcool, o cigarro e uma centena de drogas psicotrópicas.

      Bottom line 2: me incomoda criminalizar as pessoas que querem, pela razão que seja, consumir essas m... tanto quanto me incomodaria criminalizar quem come linguiça ou enche a cara.

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    2. Perfeito, principalmente na parte do "a qualquer custo".

      Mas vejo o conservadorismo burro da sociedade brasileira como um impeditivo eterno pra esse tipo de medida. Como convencer com dados a bancada evangélica, por exemplo? Em um país onde se evita discutir o Aborto, meu deus, a descriminilização e regulação das drogas jamais será objeto de discussão séria

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    3. Anônimo 15:12: não sei se é conservadorismo. Nossa mente está pré-disposta a decidir de forma lexicográfica (ranqueando opções com base em uma única dimensão por vez, embora as opções tenham várias). Como somos "avessos à perda", focamos nas consequências negativas das escolhas. Se algo pode ser ruim, tem que ser proibido, pensamos.

      É uma questão aqui de fazer contas, montar cenários (não há soluções, apenas escolhas conflituosas entre cestas necessariamente com coisas desejáveis e indesejáveis) e educar as pessoas sobre as escolhas que temos.

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    4. Sérgio, não fui claro e vc não me entendeu no ponto 3. O sujeito que está sob efeito de drogas não tomas decisões racionais (incluo bebidas alcoólicas). Isso não é considerado, por exemplo, no Rational Addiction do Becker. O cara que é viciado em chocolate (ou nicotina) ainda mantém a racionalidade. Isso sim está no modelo do Becker. Por isso, não dá para a ser a favor da liberação de drogas. Se isso não bastasse, os custos indiretos para as famílias de viciados, por exemplo, são bastante difíceis, se não impossíveis, de mensurar.
      Álcool, no entanto, é tolerado por razões históricas e, certamente, é bem menos deletério que cocaína ou crack, por exemplo.

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    5. Rodrigo, até onde lembro racionalidade no modelo do Becker está relacionado com a intertemporalidade do processo de otimização do plano de consumo do sujeito e não com a não existência do elemento de "path-dependence" no consumo que existe no modelo (o treco de passado influencia presente capturaria o vício) nem com a natureza do bem.

      Mas eu acho que esse modelo do Becker pode ser usado pra justificar a liberalização. No modelo o sujeito faz conta de valor presente de stream futuro de custo pra decidir se consome hoje. De modo que se você mexer no preço futuro, você pode reduzir rapidamente o consumo, ao menos dentro do modelo. Isso poderia ser feito via taxação pesada. Mas esse só é uma opção factível (ao menos diretamente) se você colocar tirar esse mercado da ilegalidade e deixar que ele seja explorado/regulado como é o mercado para outras drogas. Taxar demais vai criar um mercado paralelo como existe hoje pro cigarro, mas imagio que alguém mais fácil de controlar.

      De qualquer forma, você parece assumir que a liberação provocaria uma explosão sustentada no consumo. Isso é batante discutível e, como eu disse, a experiência de Portugal e da Holanda sugere que falso.

      Àlcool é bem mais devastador do que essas drogas todas. Mas em parte porque os efeitos de curto prazo são tão devastadores que ninguém vive para consumir essas coisas por muito tempo como é o caso do àlcool e do cigarro.

      Sim, os custos para as famílias são grandes. Mas são custos que precisam ser confrotados com outros custos tão ou mais indesejáveis (números oficiais relatam que em 2012 mais de 60 mil pessoas morreram no México em violência drug-related. Uma fração é de membros de gangue; a maioria é inocente bystanders. No RJ deve ter mortes em monta considerável também ).

      Como eu disse: não tem solução de canto aqui. Só escolhas conflituosas, isto é, entre "cestas" com pelo menos um pouco de coisa indesejável.

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    6. http://www.economist.com/blogs/dailychart/2010/11/drugs_cause_most_harm

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  3. By the way, Profº De Losso, observe o gráfico do link a seguir. Parece que o consumo de alcool, nicotina e cafeína é mais deletério que marijuana, LSD e outras drogas alucinógenas.

    http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Drug_danger_and_dependence.png

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  4. "O estado arrecadaria mais, o que poderia ser usado para financiar campanhas educacionais e o tratamento dos usuários" Esquece! no bráseo o $$$ iria para o superávit primário ou alguma sinecura na ARSI - Agência Reguladora de Substâncias Ilícitas, em troca de apoio no Congresso Nacional.

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  5. Até agora, foram os seus textos os mais interessantes que li no blog, parabéns

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    1. Outro leigo aqui (não o mesmo de cima) também acha isso. Parabéns!

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  6. "Àlcool é bem mais devastador do que essas drogas todas. Mas em parte porque os efeitos de curto prazo são tão devastadores que ninguém vive para consumir essas coisas por muito tempo como é o caso do àlcool e do cigarro".

    Ué, se os efeitos de curto prazo são tão devastadores, como que eles ainda são menores que o do álcool e do cigarro?

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    1. Qual a fonte disso? Obviamente que isso vai depender das quantidades consumidas e da "taxa" de troca entre essas coisas. 5g de cocaína é suficiente para causar intoxicação letal do sujeito, uma quantidade que cabe na palma da mão. Quanto de àlcool e tabaco produziria um risco parecido?

      De qualquer forma, provar que substâncias legais como cigarro e àlcool são mais letais do que as drogas ilegais apenas dá mais argumentos para justificar um reexame da proibição.

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