quarta-feira, 12 de março de 2014

Peixe na água

Mario Vargas Llosa é sempre bom. Em debates e entrevistas, como colunista de jornal, crítico literário e, claro, como romancista. Conheço gente bem sucedida que gostaria de ser Vargas Llosa. É compreensível. Para falar a verdade, eu também gostaria de ser Vargas Llosa, ou ao menos de escrever de maneira tão elegante e clara. Meus livros prediletos do escritor peruano são Conversa na Catedral e Guerra do Fim do Mundo.

Reli recentemente Peixe na Água. Não inteiro. Apenas os capítulos nos quais Vargas Llosa narra a experiência da sua candidatura presidencial em 1990. Nos demais capítulos, que se intercalam, ele retorna no tempo para falar de sua infância, adolescência e dos anos que antecederam sua partida para Paris em 1958 recém casado com tia Julia e animado pelo projeto de se tornar escritor. Vale a pena ler integralmente o livro, mas para quem se interessa por política os capítulos dedicados à incursão de Vargas Llosa pelo mundo da política são imperdíveis. Um mundo estranho a ele que o encantou mas com o qual nunca se entendeu muito bem. Tanto é assim que perdeu a eleição e nunca mais se candidatou a nada. Quem entra de verdade na vida política, ganhando ou perdendo, pensa sempre na próxima eleição.

A estranheza de Vargas Llosa com a política fica logo ressaltada na epígrafe que abre o livro, retirada de A Política como Vocação, de Max Weber, texto clássico e fundamental na Ciência Política: “Os cristãos primitivos também sabiam com muita precisão que o mundo é governado pelos demônios e que aquele que se mete em política , ou seja, aquele que admite utilizar o poder e a violência como meios, selou um pacto com o diabo, de tal modo que deixa de ser verdade que em sua atividade o bom produza apenas o bem e o mau o mal, mas que frequentemente acontece o oposto. Quem não vê isso é uma criança, politicamente falando.”

Vargas Llosa flertou com diabo, mas não selou o pacto. Foi salvo, por assim dizer, não por iniciativa própria, mas porque não conseguiu convencer a maioria dos peruanos a apoiar a radical agenda liberal defendida por ele. Na reta final da eleição foi atropelado por Alberto Fujimori, que poucos meses antes era um desconhecido candidato de ascendência japonesa.

Lendo o relato ex-post de Vargas Llosa fica a convicção de que surpreendente não foi ele ter perdido a eleição, mas sim de quase tê-la ganho, tendo em vista a franqueza empregada pelo escritor na defesa de um programa liberal de A a Z. Se fosse submetido à classificação proposta no site Political Compass, tema de um post de Márcio Nakane neste blog (ver aqui), estaria na quina do quadrante direita-libertária.

Imaginem a dificuldade dele em lidar com representantes do empresariado defendendo a ampla abertura do mercado e o fim de subsídios estatais; com estudantes sendo a favor do fim da gratuidade do ensino superior; com sindicalistas pregando a flexibilização de leis trabalhistas; com políticos, a redução do tamanho do estado.

Chegou tão longe porque o governo de Alan Garcia foi desastroso, porque os peruanos tinham se cansado dos partidos e políticos tradicionais e porque ele conseguiu empolgar a classe média peruana e engajá-la na campanha.

Mas o antiliberalismo do Peru profundo estava à espreita. Ao cabo, ele acabou derrotando Vargas Llosa. Evento que faz refletir a respeito da dificuldade de uma agenda genuinamente liberal se tornar eleitoralmente competitiva na América Latina, Brasil incluso.

Duas características basilares da constituição desses países explicam, a meu juízo, a resistência ao liberalismo: a hipertrofia estatal e a pobreza acompanhada da concentração de renda.

Dois trechos retirados do livro de Vargas Llosa ilustram esses pontos.

No primeiro, ele descreve o ethos mediano dos políticos peruanos: “Conheci muita gente naqueles três anos e, fossem pessoas do litoral, da montanha ou da selva, todas pareciam farinha do mesmo saco. Eram, ou haviam sido, ou irremediavelmente seriam, senadores, deputados, vereadores, prefeitos, subprefeitos. (...) Todos praticavam a filosofia moral sintetizada no seguinte preceito: ‘Viver fora do orçamento do Estado é viver no erro’”.

No segundo, fala de eleitores participantes de grupos de pesquisa qualitativa. “As pessoas convocadas, umas doze, eram homens e mulheres escolhidos entre os mais pobres favelados de Lima. (...) A identificação deles com Fujimori era total e, posso usar a expressão, irracional. (...) Quando lhes perguntaram por que não votavam em mim, ficaram desconcertados por ter que dar uma explicação sobre algo em que nunca haviam pensado. Finalmente alguém mencionou as acusações mais frequentes que nos faziam: o choque econômico e a educação dos pobres. Mas a resposta que melhor pareceu sintetizar o sentimento de todos foi: ‘esse é o dos ricos, não é?’”

E Vargas Llosa, o candidato “dos ricos” e que defendia tirar os políticos do orçamento do Estado, perdeu a eleição. Procurou fazer o que entendia ser o bem para o seu país. O Peru, contudo, ficou por 10 anos nas mãos de um presidente autoritário e corrupto.

7 comentários:

  1. Muito bom post, Ricardo! Talvez um dos melhores já publicados nesse blog.

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  2. O Ricardo é um dos melhores redatores do Brasil

    Richard, leia "A Festa do Bode" também

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  3. Ricardo, parabéns pelo texto. A prosa e fluidez do texto são das melhores. Quando crescer quero escrever assim. :)

    Eu queria levantar um ponto sobre sua hipótese de que Estado grande e desiguladade de renda explicam (num sentido causal) parte boa do antilibelarismo dos latino americanos.

    Não há um problema de causalidade reversa ou de variável omitida? Isto é -- e primeiro: será que Estado e desigualdade são grandes nessas sociedades exatamente porque as pessoas (voters e rulers) são antiliberais (i.e., rejeitaram o primeiro teorema do bem-estar)?

    Segundo: será que não tem outra variável aí que influencia tanto o grau de antiliberalismo quanto o tamanho da desiguladade e do Estado nesses lugares? Por exemplo: desiguladade e Estado são relativamente grandes no Reino Unido -- o governo tem 39% do PIB e o Gini deles é relativamente alto -- e no entanto eles são uma sociedade com valores majoritariamente liberais (em que diga ao contrário esses 39%...). Será que "cultura/valores" (senso de comunidade, de fairness, o apreço pelos direitos "naturais" - como dizia Locke - à vida, a propriedade e a liberade) não mereceria entrar nessa história pra mediar a existência desse link entre antiliberalismo e tamanho do Estado em uns lugares e não em outros?

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    1. Sérgio, você levanta questões pertinentes, para as quais tenho mais dúvidas que certezas. Visão de mundo, valores, ideologias (como queira chamar) certamente contam bastante para compor o caráter sócio-econômico de uma nação. Mas pensando na gênese de uma nação, não sei dizer o que vem primeiro: valores/ideologia ou estrutura econômica. Um bom experimento histórico a respeito dessa questão são os Estados Unidos. Assumindo que o perfil dos imigrantes que colonizaram os Estados Unidos foi relativamente uniforme, como explicar as diferenças sociais/econômicas/ideológicas que foram se constituindo entre o Sul e o Norte?
      E aceito relativizar minha afirmação a respeito da importância explicativa do Estado grande e da pobreza para o antiliberalismo peruano e latino-americano. Coloquemos dessa maneira: dadas as características atuais vigentes nessas sociedades, hipertrofia estatal e pobreza são obstáculos relevantes para o sucesso político eleitoral de agendas liberais.

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  4. Acho que somos antiliberais e anticoletivos. Essa duplinha não produz coisa boa...

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  5. Mais um post excelente. Parabéns.
    Abçs,
    Daniel

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  6. excelente post mesmo, obrigado!

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