Ter um emprego é importante. Fora a questão óbvia de que isso evita que o sujeito viva em condições de miséria, ter um emprego ajuda, em geral, a dar uma sensação de que contribuímos em alguma medida para a sociedade em que vivemos. Mais do que isso: quando se trata de indivíduos jovens, ter um emprego pode inclusive ajudar a mantê-los longe da atividade criminal; nesse sentido, o emprego ajuda a promover a "paz social". Não é por acaso, portanto, que os governos estão sempre preocupados em crescer e maximizar o nível do emprego -- até mesmo, como parece ser o caso do Brasil, quando isso custa ineficiência alocativa, inflação, isolacionismo comercial e what not.
Mas como criar emprego e renda de populações jovens pouco escolarizados e com baixa qualificação? Um artigo publicado na última edição do Quarterly Journal of Economics dá uma pista nessa direção.
No artigo intitulado Generating Skilled Self-Employment in Developing Countries: Experimental Evidence from Uganda, Christopher Blattman (Univ. of Columbia), Nathan Fiala (German Institute for Economia Research) e Sebastian Martinez (BID) avaliam o impacto do "Youth Opportunities Program", um programa do governo de Uganda desenhado para ajudar os pobres e os desempregados a se tornarem profissionais autônomos -- em geral no ramo de alfaiataria e carpenteria.
Programa de crédito
O programa funcionou assim. O governo convidou jovens adultos -- homens e mulheres -- a formarem grupos e submeterem propostas de como eles usariam o crédito que o governo concederia para montar um negócio independente. O governo aleatorizou o crédito entre 535 grupos elegíveis a receberem o crédito. Os grupos que foram selecionados receberam cerca de quase R$ 17.000 em média. Isso dava uma média de cerca de R$ 850 por indivíduo. Para você ter uma ideia da dimensão desse dinheiro, isso era mais ou menos equivalente à renda anual deles.
O programa é controverso. Há, mesmo dentro da comunidade acadêmica dessa área, um certo ceticismo com a desejabilidade, digamos assim, de simplesmente dar dinheiro para um grupo de jovens inexperientes e com poucas qualificações. Mas os resultados são surpreendentes.
Uganda?
Algumas informações para para você ter uma ideia melhor do local de implementação desse programa. Uganda está localizado na região leste da África e tem uma população de 30 milhões de pessoas. Seu PIB per capita era de pouco mais de R$ 700 logo antes do início do programa. Essa "foto" contudo não faz jus ao "filme" da região nos últimos anos: a economia de Uganda cresceu 6.5% por ano entre 1990 e 2007, com inflação de menos de 5% e níveis decrescentes de pobreza. Esse crescimento, todavia, está concentrado na região centro-sul do país.
A região norte, onde o programa foi implementado, tinha elevados níveis de pobreza e analfabetismo -- em 2006, dois terços viviam abaixo da linha de pobreza e praticamente metade iletrados. Essa era uma área que, por décadas, esteve envolvida em uma guerra civil. Em 2006, quando houve um tratado de paz que encerrou um longo conflito entre o governo e o principal grupo de rebeldes no país (o "Exército de Resistência do Senhor" - LRA, acrônimo para "Lord's Resistance Army"), dois terços da população dessa área viviam abaixo da linha de pobreza e praticamente metade eram analfabetas.
O perfil dos candidados ao programa dá uma ideia mais precisa das condições econômicas das pessoas naquela área: jovens, trabalhadores rurais, com uma média de 8 anos de estudo, ganhando menos de R$ 3 por dia e trabalhando menos de 12 horas por semana. Não há dúvida: a implementação do programa nessa área veio a calhar.
Resultados
O artigo mostra que o programa teve impactos enormes, sobretudo para as mulheres. Analisando o que aconteceu com os participantes do programa dois e quatro anos depois, os autores observaram que houve um aumento substancial e persistente no investimento, trabalho e na renda.
O artigo mostra que o programa teve impactos enormes, sobretudo para as mulheres. Analisando o que aconteceu com os participantes do programa dois e quatro anos depois, os autores observaram que houve um aumento substancial e persistente no investimento, trabalho e na renda.
Alguns números pra dar concretude pra esse resultado. Quatro anos depois, os indivíduos "tratados" tinham estoque de capital 57% maior, rendimentos 38% maiores e trabalhavam 17% mais -- tudo isso em relação ao grupo de controle que não teve acesso a crédito.
As estimativas dos autores é de que todo o programa, dado os retornos observados, poderia ser repago em menos de 5 anos à uma taxa de juro real de 15% ou 7.3 anos se a taxa fosse de 25\%. Isso é imensamente mais rápido do que o tempo de repagamento (payback) que seria necessário fosse esse um típico programa de microcrédito -- que os autores dizem ser de cerca de 100%.
Limitações
Há algumas limitações como é comum dessas investigações experimentais. A primeira é que a randomização não foi exatamente um sucesso -- o grupo de controle é relativamente mais rico do que o grupo de tratamento. A segunda é que houve também um problema de atrito, já que 18% da amostra não foi encontrada para avaliação posterior de 2 e 4 anos. O programa tem um componente não-monetário cujo efeito não foi devidamente controlado: o requisito de submissão de um plano de negócio acabou provavelmente funcionando como uma espécie de mecanismo de compromisso, sem nada análogo entre os indivíduos no grupo de controle. É difícil saber exatamente o efeito dessas coisas no resultado. Mas a análise é feito com cuidado e rigor (não por acaso está publicado no que é seguramente um dos três principais journals da profissão), de modo que fica difícil acreditar que os resultados qualitativos não sobreviveriam à um desenho ideal com randomização perfeita e inexistência de atrito. Infelizmente, dados -- experimentais ou não -- que permitam uma estratégia "limpinha" de identificação de alguma relação econômica importante têm praticamente a mesma raridade na profissão de que gozam os unicórnios.
Por que isso importa?
A importância desse trabalho não poderia ser maior.
Sabe-se que que a maior parte das intervenções voltadas para criar empregos em países subdesenvolvidos (programas de trainees, treinamento vocacional etc) e aumentar a renda dos mais pobres (programas de transferência condicional de dinheiro como o Bolsa-Família, Bolsa-Escola e outros do gênero) têm de fato efeitos positivos na redução da pobreza. Mas há pouca evidência de que esse programas tenham efeito sobre emprego e rendimento.
O trabalho de Blattman, Fiala e Martinez mostra evidência ao nível micro pode ter efeito na renda, na formalização do trabalho e na escolha ocupacional das pessoas e, portanto, em mudanças setoriais mais gerais na economia. Mais importantemente: esse trabalho mostra como as "imperfeições" do mercado de crédito podem impedir o crescimento o econômico ao bloquear iniciativas empreendedoras por conta da dificuldade de financiar os custos fixos que "start-up" um empreendimento possui.
Distribuir renda ou promover o empreendedorismo?
É óbvio que essas coisas não são excludentes. Mas o resultado desse artigo serve para lembrar, sobretudo para os que parecem tão focados em estratégias à la Robin Hood de reduzir a pobreza (porque tirando dos ricos para dar para os pobres via algum esquema de tributação), que outros mecanismos de eliminação da pobreza (não da relativa, que sempre existirá enquanto nascermos diferentes uns dos outros em tantas dimensões, mas da absoluta) podem ser bastante eficientes e talvez merecedores de mais atenção. Talvez isso não aconteça -- e aí vai uma provocação -- porque essas outras portas de saída da pobreza envolvam alguma forma de empreendedorismo e, portanto, a suposta "exploração" de outrem. Infelizmente, a evidência sugere que os lugares onde a criação de negócios é "framed" como exploração são também os lugares onde há mais miséria. Pior para todos.
Achei interessante o artigo. Lembrei também que existe uma pesquisa que mostra que negros "recém imigrantes" nos Estados Unidos conseguem atingir padrões de renda muito além do que os seus pares "quatrocentões". A explicação dada foi de que a escravidão foi nefasta ao mitigar empreendedorismo, ambição e envolvimento na política.
ResponderExcluirPorém imagino que existam dois problemas com o empreendedorismo transformado em política pública:
1. Ideologicamente, as pessoas que se situam mais à esquerda não vão querer que o governo promova esse tipo de coisa, por acreditar que o estado arca com um custo cujo o fruto só o mercado colhe. Enquanto algumas pessoas mais a direita acreditam que uma política pública não pode "casar bem" com o empreendedorismo, acredite, alguns pensam assim. Ou seja, pessoas que não são treinadas em economia não conseguem compreender que os dois argumentos apresentados acima são falaciosos e um político que queira implementar um bom programa não terá apoio da sociedade.
2. Promover o empreendedorismo é uma estratégia ousada da qual, no geral, não dispomos de técnicas pedagógicas adequadas ou nenhum caso para nos basear. Como fazer um programa desses dar certo? É um tiro no escuro. Conseguir apoio financeiro pode ser complicadíssimo, porque a proposta é muito boa, mas os resultados são muito incertos.
Enfim, gosto mais de política do que economia, mas gostei bastante do artigo.