Para começar, uma quase promessa. Após resolver algumas pendências acadêmicas e pessoais, pretendo participar mais regularmente deste blog.
Volto com um texto excepcionalmente longo retomando a discussão suscitada por meu último post (ver aqui), no qual utilizei citação retirada de Why Parties de John Aldrich para pegar carona tardia na onda de críticas ao sistema político americano.
Meu amigo Carlos Eduardo Soares Gonçalves (CESG) interpretou o post como uma defesa do sistema proporcional brasileiro. Não era. A intenção foi evidenciar que nenhum sistema político é isento de problemas, que não há um modelo perfeito capaz de oferecer respostas adequadas às variadas demandas postas pela sociedade e os agentes econômicos ao ordenamento político.
CESG é ferrenho defensor do sistema majoritário porque este seria menos propenso à corrupção e ao aumento dos gastos públicos, conforme concluem Persson e Tabellini (P&T) em The Economic Effects of Constitutions. Eu não sou ferrenho defensor do sistema proporcional. Porém, não acredito que substituir o sistema proporcional pelo majoritário puro seja adequado e nem politicamente viável no Brasil.
Meu objetivo principal neste post, contudo, não será defender o sistema proporcional, mas sim discutir por qual razão, segundo CESG, os cientistas políticos (CPs) brasileiros, mesmo os bons, entre os quais ele gentilmente me colocou, preferem o sistema proporcional enquanto, nas palavras dele, os economistas se inclinam para o majoritário. Com bem sabe CESG, nem todos os CPs preferem o sistema proporcional. Nem sei se os "proporcionalistas" são mesmo maioria no Brasil, muito menos mundo afora. E, decididamente, a maior simpatia por um ou outro sistema não é critério para distinguir os bons dos maus CPs.
CESG sugeriu que eu lesse Persson e Tabellini. Li. Confesso que não integralmente. Confesso também que não tenho arsenal técnico para avaliar a correção do amplo trabalho econométrico que os dois autores empregam para examinar a interação entre sistemas políticos e resultados econômicos. Mas não tenho dúvida sobre a qualidade do trabalho dos dois autores. São pesquisadores de primeira linha, reconhecidamente sérios e com vasto conhecimento acumulado no campo da economia política. Observações que se aplicam sem ressalvas também a CESG. Sobre P&T, a ligeireza da leitura pode ter me levado a equívoco. Mas não me pareceu que eles tenham chegado a conclusões assertivas a respeito da relação entre tipo de sistema e corrupção. No capítulo de conclusão eles dizem que:
“in the case of political rents and corruption, we expected the fine details of electoral rules to influence outcomes, but not necessarily the coarse distinction between majoritarian and proportional rule. (…) Direct individual accountability via individual ballots under plurality rule reduces both corruption and government ineffectiveness, as expected. Small electoral districts do the opposite, in line with the idea that barriers to entry are higher in singlemember districts. (…) Since these two dimensions of the electoral rule covary, the net effect of a comprehensive reform toward majoritarian elections on rent extraction is ambiguous, even though the effect of individual accountability seems to (weakly) prevail in the data” (P&T: 272).
Quanto à tendência ao aumento de gastos, eles não têm dúvida. Sistemas proporcionais favorecem a elevação das despesas públicas especialmente as de cunho social. É o resultado esperado. Afinal faz parte da lógica do sistema proporcional garantir aos vários segmentos da sociedade espaço de representação nas instâncias institucionais de decisão política. E isto acaba se traduzindo em pressões sobre o orçamento público.
P&T resumem corretamente a querela entre "majoristas" e "proporcionalistas" como estando baseada no trade-off entre accountability e representação. Os sistemas majoritários em geral - mas não todos advertem P&T, não o americano, por exemplo, constituído por distritos de magnitude unitária, pois esses criam fortes barreiras à entrada de forças políticas concorrentes - favorecem a accountability. Os proporcionais, a representação.
E representação, como vislumbrou CESG, é uma questão capital para os CPs. Não é para os economistas. A representação é uma relação fundamental do contrato político primordial. Aquele no qual o governado concede ao governante licença para que este tenha poder sobre ele.
Por que devo aceitar ser legitimamente governado por um partido, uma pessoa ou um colegiado se eles não me representam? É uma pergunta crucial para os CPs. A partir dela há terreno fértil de reflexão para os CPs tanto no campo teórico quanto analítico institucional. Portanto, representação, insisto, é algo muito importante para os CPs. Tanto é assim que os CPs favoráveis ao sistema majoritário precisam encontrar argumentos e evidências para sustentar que esse sistema também consegue processar em nível aceitável os links representativos.
É bom que seja assim. É bom que algo seja muito importante para os CPs e menos para os economistas. Afinal, embora tenham diversas interfaces, CP e economia são hoje campos de saber apartados. Cada qual tem seus próprios conceitos, problemas, metodologias, escolas, modelos, autores guia etc. Os CPs aprendem bastante com os economistas, os quais desbravam muitos campos e perspectivas novos para a CP. Sem falar na inegável contribuição dos economistas ao rigor no tratamento estatístico da empiria aplicada a questões sociais. Mas CP não é economia. Um dos desafios da CP é justamente extrair dos fenômenos sociais o que eles têm de intrinsecamente político. Aspectos econômicos – e também os sociológicos – merecem ser levados em conta, contudo não constituem o cerne do trabalho analítico dos CPs. Somente assim, a CP poderá de fato gerar conhecimento relevante e escapar do risco de se tornar um pastiche da economia ou da sociologia. Somente dessa maneira os economistas poderão verdadeiramente aprender algo com os CPs.
Acho, por exemplo, que a CP tem mais ferramentas para tentar explicar porque os sistemas proporcionais são predominantes nos países democráticos e, mais ainda, porque, como mostram P&T, em quase todos os países que reformaram seus sistemas políticos nas últimas décadas a mudança foi no sentido de torná-los mais proporcionais (a exceção foi Fiji). A pista, acredito, está justamente na pressão que os vários setores e grupos da sociedade exercem a fim de ter acesso a algum espaço nas instâncias governamentais. A explicação alternativa, também essencialmente política, é que o sistema proporcional protege os interesses da elite partidária pois garante aos partidos mais chance de sobrevivência na oposição. Seja qual for a razão, se o predomínio crescente dos regimes proporcionais é mesmo uma tendência, os CPs e economistas terão de lidar com isso.
Então, CPs e economistas estão condenados a ficar cada um no seu quadrado? Não, o diálogo e a interação entre a economia e a CP são bem-vindos e podem produzir coisas muito interessantes, como é o caso, por exemplo, da obra de P&T, a qual está coalhada de referências e modelos de CP. Mas, o diálogo somente será possível se houver respeito aos diferentes pontos de vista e somente será frutífero se cada um mantiver suas raízes epistemológicas.
Tenho certeza que essa também é a perspectiva de CESG, caso contrário não teria me convidado, em nome do Economista X, para participar deste blog.
Nada a acrescentar Ricardo. A evidência só é forte mesmo no caso da corrupção quando o sistema proporcional é com listas fechadas, como o Dirceu quer. O tradeoff está dado, eu me posiciono do lado do voto distrital porque acho mais importante, na nossa conjuntura, accountability do que representatividade.
ResponderExcluirÓtimo post! Parabéns pelo contraponto, sempre é interessante ver o "outro lado".
ResponderExcluirBelo post. Desconfio que no fundo a adoção de um ou outro sistema de representação política tem impacto causal negligível nos resultados de interesse (custo/benefício e qualidade da adm. pública em geral). Quando a cultura é "ruim" como a latino-americana, não há desenho de mecanismo que funcione, pois subverter/enfraquecer seus incentivos, ou nem desenhar nada, faz parte do modus operandi local. Do conrrário, como se explica o contraste entre o que está acima e abaixo de Tijuana?
ResponderExcluirMuito bom post, Ricardo. Parabéns. Bastante elucidativo e claro ao explicitar qual o grande trade-off envolvido.
ResponderExcluirTenho algumas perguntas:
1 - Qual sua avaliação do sistema misto? Quais os efeitos esperados da adoção do sistema misto sobre accountability e representatividade (principalmente sobre os partidos que representam vocais e importantes minorias, mas que poderiam desaparecer do cenário num sistema majoritário)?
2 - Poderia explicar esse mecanismo? "o sistema proporcional protege os interesses da elite partidária pois garante aos partidos mais chance de sobrevivência na oposição."
Isso não depende da oposição em questão? Acho que entendo seu ponto se ele se referir aos atores da oposição que não são os protagonistas, mas não à oposição como um todo.
Por exemplo, esse ponto é válido para a oposição republicana nos EUA ou Trabalhista na Inglaterra?
Abs
Caro Henrique, os sistemas mistos reduzem as vantagens e desvantagens dos sistemas puros. São preferíveis aos puros? Depende do que a sociedade demanda de seu sistema político. Se quer mezzo calabresa mezzo mozzarella (accountability temperada com representação), tudo bem. Mas é importante ressaltar que as qualidades e defeitos de um sistema, como P&T frisam bastante bem, estão determinados muitas vezes por detalhes e não pelas regras gerais. Qual é o tamanho dos distritos? A lista é aberta ou fechada? Turno único ou dois turnos? Partidos podem se aliar ou não? A combinação desses "detalhes" é que pode tornar um sistema mais ou menos funcional.
ExcluirSobre o segundo ponto, os sistemas majoritários, no limite, podem alijar do Parlamento um partido que tenha boa representação na sociedade. Imaginemos que existam apenas dois partidos e que um deles vença em todos os distritos por 51% a 49%. O partido perdedor, embora, em termos agregados, tenha obtido 49% não elegerá um único representante para o Parlamento. É claro que esse é um exemplo extremo, mas ilustra o mecanismo citado por mim. Para os partidos de oposição, os quais, assume-se, estão mais frágeis que o partido governista, o sistema proporcional lhes garante mais segurança de que não serão varridos do mapa. Empiricamente, vale menos para republicanos e trabalhistas porque são partidos social e historicamente muito enraizados nos Estados Unidos e Inglaterra.