terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Ter dinheiro nos torna "de direita" ou "de esquerda"?


Por que alguém é "de direita" ou de "de esquerda"? Existem, essencialmente, duas explicações.

Uma é a de que essas preferências políticas emanam de nossos códigos morais internos -- nossas visões sobre "o que é certo e errado". A outra é a de que nossas preferências políticas são mero exercícios de puro auto-interesse os quais vestimos com uma retórica moral.

Testar estas duas explicações parece de interesse intelectual óbvio. Mas nada fácil. Nossas atitudes políticas podem ser o produto de inúmeras influências e experiências ao longo da vida. Mesmo o sujeito sem treino científico é capaz de apreciar a dificuldade que seria identificar essas influências todas e separar seus efeitos em cada uma das explicações acimas.

É verdade que existe abundante evidência de que as pessoas mais ricas tendem em geral pro lado direito do espectro político. Mas não é claro se essa correlação é indício de uma relação causal aqui e, sendo o caso, em que direção: riqueza causa viés pra direita ou viés pra direita causa riqueza?

Uma maneira estatisticamente precisa e "clean" de responder esse tipo de questão causal seria com um experimento. Algo, grosso modo, assim: pegamos duas amostras representativas da população e damos um monte de dinheiro pra uma delas (e um "quase-placebo" à outra). Tendo registrado a distribuição de visões políticas de cada grupo, a gente agora observa o que acontece com essas visões depois da doação de dinheiro.

Seria o ideal. Mas obviamente, como é comum, experimentos ideais raramente são factíveis -- ou porque são financeiramente proibitivos, ou porque envolvem algum tipo de intervenção experimental anti-ética.

"Saída pela direita"
Nattavudh Powdthavee (University of Melbourne) e Andrew J. Oswald (Univesity of Warwick) acharam dados que podiam ser usados quase como se tivessem sido produzidos por esse "experimento ideal".

O Instituto para Pesquisa Econômica e Social da Inglaterra (ISER) coleta uma gigantesca quantidade de informações de mais de 5 mil famílias desde 1991 sobre absolutamente tudo (economia, política, saúde, comportamento, religião etc). Essas informações estão condensadas no British Household Panel Survey (BHPS). É um dos mais longos dados de painel do mundo (existem 18 séries até o momento). No meio da massa de dados que o BHPS coleta, existe informação sobre se os indivíduos da amostram ganharam na loteria e suas visões políticas.

Como os prêmios de loteria são aleatórios (condicional em jogar) e heterogêneos, Powdthavee e Oswald (2014)* viram nesses dados uma versão aproximada do "experimento ideal" para testar as explicações acimas sobre a origem das nossas visões políticas. Eles focam no sub-grupo de indivíduos que já ganharam na loteria em algum momento e exploram, em particular, as mudanças de visão política ao longo das séries entre os que ganharam mais e menos dinheiro.

O que eles descobrem?
Eles descobrem nesses dados que quanto maior era o prêmio da loteria, maior era a tendência a adotar visões "de direita" (voto). Abaixo um trecho que resume bem o artigo:
In our data set, many hundreds of individuals serendipitously receive significant lottery windfalls. We find that the larger is their lottery win, the greater is that person’s subsequent tendency, after controlling for other influences, to switch their political views from left to right. We also provide evidence that lottery winners are more sympathetic to the belief that ordinary people ‘already get a fair share of society’s wealth’.
Abaixo, um gráfico ilustrativo do resultado. Ele mostra o percentual de indivíduos que votaram no Partido Conservador ("de direita") sem ter previamente votado neles, por faixa de ganho.


A "Nova Direita" Brasileira
O resultado deste artigo -- o dinheiro torna as pessoas mais "right-wing" -- parece oferecer uma possível explicação para o surgimento de um movimento genuinamente "de direita" no Brasil -- inclusive com partido político inspirado em ideias liberais. Eu disse parece, porque pode bem ser que esse movimento de direita é menos um subproduto do aumento da renda e mais  um antagonismo ao governo do PT que tem servido para unir "liberais absolutos" e "liberais relativos" de direita.

Mas que diabos é isso de "liberal relativo/absoluto"? Explico: os "liberais absolutos" defendem liberdade econômica e individual. É a "direita tolerante". Os "liberais relativos" defendem liberdade econômica, mas não parecem comprometidos em defender as liberdades individuais que, mesmo dentro da legalidade e sem ônus pecuniário ou físico a terceiros, pareçam perseguir fins diferentes dos seus -- fins que freqüentemente invocam a manutenção da "tradição" (?) e a reprodução de códigos religiosos de ética. É a "direita intolerante". Ironicamente, talvez, pra "derrotar o mal comum" uma precisará tolerar a outra.

* Thanks to Fernando Botelho for the pointer.

12 comentários:

  1. Já vi algumas pessoas que eram de esquerda quando jovens e se tornam de direita minutos depois de preencher uma declaração de imposto de renda.

    É verdade que o brasileiro mediano não paga imposto de renda, mas apenas impostos embutidos nos produtos que consome. Acredito que a tributação, mais que o dinheiro, seja uma forma de "endireitar" as pessoas também.

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    1. Verdade. É aquela velha história: quem não fazer caridade com o dinheiro alheio?

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  2. Belo post.
    É esperado que o eleitor vire à direita ao passar a ter uma renda maior do que a mediana. Afinal, ele não quer ser vítima de políticas redistributivas.
    Agora, não me parece que o caso do surgimento da nova direita brasileira retrata o espírito do paper. O aumento de renda foi mais intenso para os mais pobres. Mesmo assim, eles continuam sem razão para serem contra a redistribuição, pq continuam, afinal, relativamente pobres. Uma evidência é que eles não são os membros do partido novo, nem são liberais em economia..
    O surgimento da nova direita parece ser a reação esperada da classe média ao aumento da carga tributária nos anos recentes, sem que ela percebesse retorno em melhores serviços ou transferências em seu favor.

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    1. Obrigado Leonardo. Seu ponto sobre o que tem alimentado a nova direita (cargfa tributária) faz muito sentido também. Isso se cofundiria com um antagonismo ao PT -- uma possibilidade que eu levantei pra explicar ao menos parte desse movimento.

      Não descarto, como vc disse, que a nova direita nada tenha a ver com o aumento de renda ao longo das últimas décadas. Mas é uma questão empírica em aberto até onde sei. Dito isto, achei apenas estranho o argumento de que o eleitor vira à direita quando migra pra metade superior da da distribuição. Digo estranho porque ele parece implicar fraçoes constantes e idênticas de alinhamento político. A menos que esteja-se (implicitamente) assumindo que (1) só quem é de esquerda muda e (2) apenas quando sai da metade inferior para a metade superior da distribuição de renda (nunca na direção oposta). Bons pontos anyway.

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  3. Meio mundo compartilhando esse texto na internet. Tem algum estudo ou texto decente sobre o assunto? Obrigado.

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    1. http://demografiaunicamp.wordpress.com/2013/10/30/porque-os-jovens-profissionais-da-geracao-y-estao-infelizes/

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  4. Como os prêmios de loteria são aleatórios (condicional em jogar). Discordo, jogar na loteria pode selecionar pessoas com características específicas que influenciem no resultado. pode-se argumentar que pessoas que construíram a própria riqueza possuem como traço de personalidade aversão a políticas de distribuição de renda. Algo como o estudo sobre acreditar em sorte ou não.

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    1. Acho que o que vc quis dizer é que (a) a decisão de jogar e quanto jogar na loteria e (b) ter visões de "direita", podem ter como causa comum algum traço de personalidade, o que renderia espúria essa associação entre ganhar na loteria e ser "de direita". O que está correto.

      Mas no estudo de Andrew e Nick esse problema é enormemente mitigado se restringindo ao grupo de pessoas que jogam na loteria. Como se fala no jargão experimental, é como se fosse um "within-subject" design: é o sujeito antes de ganhar dinheiro versus ela depois de ganhar dinheiro. Há uma série de outros controles também.

      Condicional em ter eu e você jogado na loteria, o resultado sobre se e quem de nós vai ganhar é inteiramente aleatório. A menos que haja alguma manipulação no método de sorteio, o que não acho ser o caso.

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  5. 1- pessoas que melhoraram de vida pelo esforço tem mais legitimidade de ter uma visão de direita.

    2- artistas em sua maioria são de esquerda, embora tenham renda elevada.

    3- por fim, muitos de renda superior se encaixam no perfil esquerda caviar

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  6. Nada melhor do que escrever um cheque de 100 mil reais para o Fisco para endireitar o sujeito.

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  7. Para contribuir: http://www.youtube.com/watch?v=IuqGrz-Y_Lc

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  8. É verdade mesmo. O pessoal acredita em igualdade financeira, distribuição de renda, mas o que você vê nos países dominados pela esquerda é exatamente pobreza. Então, em vez de todos ficarem ricos, todos ficam pobres, quem deseja este tipo de igualdade miserável?

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