domingo, 10 de novembro de 2013

Punição coletiva: futebol e microcrédito

Confusões em estádios de futebol têm ocasionado punições pesadas para clubes, como perdas de mandos de campo, jogos com portões fechados e até perda de pontos nas competições que disputam. À primeira vista isso não parece fazer muito sentido. Seria mais justo punir os indivíduos responsáveis pela confusão. Por que prejudicar milhares de torcedores de um time pela irresponsabilidade de meia dúzia de vândalos?

Mas há um possível benefício nessa estratégia, caso as autoridades tenham dificuldade em identificar os responsáveis. Isso porque outros torcedores nas arquibancadas têm capacidade de monitorar mais de perto as ações individuais. Por exemplo, uma pessoa que lançasse uma garrafa no campo poderia ser prontamente identificada e punida por outros torcedores, que ficariam furiosos se o time fosse prejudicado por tal atitude.

Note que as autoridades do futebol não precisam observar quem realizou o ato. A ameaça de punição por parte da própria torcida pode coibir a violência. Além disso, mesmo que as autoridades tenham essa capacidade de observar os responsáveis (isso é possível com câmeras nos estádios), a punição ficaria a cargo da justiça. Se a justiça impõe penas brandas, o incentivo pode não ser suficiente para reduzir confusões nos estádios. A imposição de um castigo ao clube provê um mecanismo adicional de punição ao indivíduo.

Essa lógica é semelhante à de esquemas de passivo coletivo (ou aval solidário) em instituições de microcrédito. Nesse caso, um conjunto de pessoas (em geral da mesma comunidade) toma empréstimos individuais. Porém, se uma dessas pessoas ficar inadimplente, os empréstimos de todos os indivíduos do grupo não serão renovados. Mais uma vez, a ação é individual, mas a punição é coletiva.

Esse arranjo tem duas vantagens. Primeiro, para que os negócios financiados tenham sucesso (diminuindo a chance de calote), é necessário que o empreendedor realize esforço para tal. Da perspectiva do banco, é difícil e custoso observar esse esforço. Por conta disso, o banco pode então diminuir o volume emprestado, o que reduz o acesso a crédito principalmente entre os indivíduos mais pobres (que não têm colateral).

Mas para as pessoas da comunidade, esse monitoramento do esforço individual pode ser realizado mais facilmente. E os envolvidos têm incentivo a se monitorarem, pois elevam as chances de renovação do próprio empréstimo. Isso potencialmente reduz o risco por parte do banco, possibilitando taxas mais baixas e maior acesso a crédito.

A segunda vantagem desse esquema é que ele propicia punição adicional em caso de inadimplência, na medida em que o caloteiro pode receber sanções sociais dentro da própria comunidade. Esse tipo de castigo dá ainda mais incentivo para que o compromisso de repagar o empréstimo seja honrado.


11 comentários:

  1. Muito boa a analogia. Parabens pelo post!

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  2. Excelente analogia, Mauro! Forte abraço! Marcos Falcão

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    1. Valeu, Marcos! Legal ouvir de vc. Fico feliz em saber que vc segue o blog.

      Esse post foi em parte inspirado pela experiência do BNB.

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  3. Mauro, uma dúvida: no caso do microcrédito, não seria preciso supor que a comunidade teria o poder de aplicar algum tipo de punição ao indivíduo que dá o calote?

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    1. Tiago,
      Pense em uma comunidade de 10 agricultores rurais, que tomam um empréstimo com aval solidário. Imagine a reação dos 9 que honram suas dívidas, ao saber que o crédito não foi renovado por causa de um caloteiro. No mínimo ele vai ficar isolado.

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  4. Excelente post, como sempre. A minha ressalva é que, ao meu ver, torcedores se comportam como grupos, alguns organizados, e a ação individual é vaporizada na multidão (no popular: o cara só é macho porque tá acompanhado). Aí tem dois aspectos: primeiro, o grupo de vândalos é coeso e aparentemente são mais fiéis à irmandade do que ao clube pra o qual dizem torcer, o custo de dedurar um integrante meliante parece maior do que o custo de todo mundo assistir ao jogo em outro local mais distante por uns dias. Segundo, as organizadas são separadas da torcida comum, o que piora o mecanismo de delação, somando-se ao fato de que os torcedores comuns não são coesos e organizados para realizar punição social à um integrante malfeitor. Aparentemente há uma certa animosidade entre os grupos organizado e comum, o que pode indicar uma punição social parcial.
    Acho que uma solução mais eficiente passa pela ação dos clubes. Ao perder mandos de campo, o clube deve processar sua organizada pelos prejuizos, fazendo o grupo onde está o meliante internalizar parte do problema. Daí talvez a restrição de participação da torcida em confusões se inverta, o mecanismo de controle que você citou funcionaria sim dentro da organizada e o custo de acobertar meliantes ficaria muito maior vis-à-vis a delação e punição individual.

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    1. Excelente ponto, Silvio. O problema é, para processar a torcida, o clube precisa ir à justiça. Ou, para evitar desgaste (e aguentar um bando de vândalos com custo de oportunidade do tempo baixo), o próprio poder público pode processar a torcida. Nesse caso, não acredito que a punição seja suficientemente grande. A não ser que haja uma mudança na legislação, com a possibilidade de punições judiciais mais pesadas.

      Curiosamente, olha o que aconteceu no domingo em Corinthians x Fluminense, com o cara que jogou o copo d'água no campo:

      http://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2013/11/torcedor-atira-copo-dagua-em-romarinho-timao-pode-ser-punido.html

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    2. É, a punição pecuniária é sempre melhor, mas a justiça é ruim de decisão e pior ainda de dosimetria.
      Mas o clube poderia tentar fazer a torcida internalizar com coisas como: perda de 4 mandos de campo, serão 4 mandos de campo sem a torcida organizada que causou o prejuizo; ou ingressos 500% mais caros para o setor onde a organizada fica. Mas ninguém faz nada porque mesmo a punição de perda de mando parece nem ser custosa o suficiente para fazer os clubes se mexerem.

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    3. Ouvi uma proposta interessante ontem no rádio: nos jogos em que o clube perde mando, a torcida deixa de receber ingressos (via doação ou preço mais baixo) do clube.

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